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A agricultura no relatório 2022 do IPCC


Decio Luiz Gazzoni

        O relatório do International Panel on Climate Change (IPCC) é um documento de 3.076 páginas (disponível em bitly.ws/pXxR), abordando todos os aspectos das atividades humanas e do meio ambiente em escala global, à luz dos fatos científicos que estejam além de qualquer dúvida razoável, que tenham sido publicados em revistas de elevada credibilidade, sem contestação dos pares. Trata-se de um libelo – quase um ultimato, a última oportunidade – para que a sociedade global acorde para ações que interrompam a caminhada rumo ao desastre representado pelas mudanças climáticas. É uma paráfrase da citação atribuída à Madame de Pompadour: Après nous, le déluge, a herança maldita que deixaremos para as gerações vindouras, se nada fizermos para impedir a catástrofe.

                Durante a leitura do documento, separamos as menções mais importantes relacionadas à segurança alimentar, o que inclui agricultura, pecuária e pesca, além dos sistemas florestais. A seguir resumimos dez temas referenciados no relatório, procurando manter o máximo de fidelidade ao texto original, em inglês:

 

Tema 1: As alterações climáticas já estão prejudicando os sistemas alimentares e florestais, com consequências negativas para os meios de subsistência, segurança alimentar e nutrição de centenas de milhões de pessoas, especialmente em latitudes baixas e médias. O sistema alimentar global não está conseguindo lidar com a insegurança alimentar e a desnutrição de forma ambientalmente sustentável.

                Os impactos das mudanças climáticas estão influenciando negativamente a agricultura, a silvicultura, a pesca e a aquicultura, dificultando cada vez mais os esforços para atender às necessidades humanas. O aquecimento global induzido por atividades antropogênicas desacelerou as taxas de incremento da produtividade agrícola nos últimos 50 anos, em latitudes médias e baixas. Estudos mostraram que, em determinados locais, os rendimentos das culturas estão sendo comprometidos pela presença do ozônio superficial. Em outros locais, as emissões de metano impactaram negativamente o rendimento das culturas ao aumentar as temperaturas e as concentrações de ozônio na superfície.

                O aquecimento está reduzindo a qualidade de cultivos e pastagens, além da estabilidade das colheitas. Condições mais quentes e secas aumentaram a mortalidade de árvores, provocando distúrbios florestais em muitos biomas temperados e boreais, impactando negativamente os serviços ecossistêmicos, fundamentais à agricultura e a outras atividades humanas.

                Mas não é só o que já aconteceu. Os riscos associados à segurança alimentar, relacionados ao clima, estão aumentando globalmente na agricultura e na pesca. Temperaturas e umidades mais altas causadas pelas mudanças climáticas aumentam a contaminação por fungos toxigênicos ou alergogênicos em muitas culturas alimentares. A proliferação de algas nocivas e doenças transmitidas pela água ameaçam a segurança alimentar, a economia e os meios de subsistência de muitas comunidades costeiras. O aumento do aquecimento e acidificação dos oceanos está majorando a bioacumulação de toxinas e contaminantes em cadeias alimentares marinhas. Isso está promovendo a biomagnificação de poluentes orgânicos persistentes e metilmercúrio, que já prejudicam a pesca.

 

Tema 2: Atualmente, cerca de metade da população mundial está enfrentando grave escassez de água por, pelo menos, um mês por ano, devido a fatores climáticos. A insegurança hídrica se manifesta, principalmente, pela escassez e é ainda mais exacerbada devido à governança inadequada da água. Eventos extremos e vulnerabilidades subjacentes intensificaram os impactos sociais das secas e das inundações, impactando negativamente a agricultura e a produção de energia, contribuindo para o aumento da incidência de doenças transmitidas pela água. Os impactos econômicos e sociais da insegurança hídrica são mais pronunciados em países de baixa renda do que nos de renda média e alta.

 

Tema 3: Os efeitos dos impactos das mudanças climáticas foram observados em todos os setores econômicos, embora a intensidade dos danos varie por setor e por região. Eventos climáticos extremos, que têm se tornado mais intensos e mais frequentes, estão associados a grandes custos por danos materiais à infraestrutura e interrupções na cadeia de suprimentos, com maior impacto nos países de menor grau de desenvolvimento. Impactos climáticos generalizados minaram os meios de subsistência econômicos, especialmente para as populações vulneráveis desses países. Os impactos climáticos e os alertas de riscos foram insuficientemente internalizados em práticas de planejamento e orçamento do setor público ou privado, com o objetivo de adaptação aos novos cenários.

                As perdas econômicas das mudanças climáticas surgem de impactos adversos na produtividade das culturas, pela menor disponibilidade de água e menor produtividade do trabalho nas lavouras devido ao estresse térmico. Perdas econômicas maiores são observadas para setores com alta exposição direta ao clima, incluindo perdas regionais para agricultura, silvicultura, pesca, energia e turismo. Também incorrem custos de adaptação, gastos com desastres, recuperação e reconstrução de infraestrutura. Estima-se que as mudanças climáticas tenham desacelerado as tendências de diminuição da desigualdade econômica entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, com efeitos particularmente negativos para a África.

 

Tema 4: Prevê-se que os riscos relacionados com a água aumentem em todos os níveis de aquecimento, sendo os riscos proporcionalmente menores com incrementos de 1,5°C, do que graus mais altos de aquecimento. Regiões e populações com maior exposição e vulnerabilidade serão mais prejudicadas. Mudanças projetadas no ciclo e na qualidade da água, mudanças na criosfera, secas e inundações afetarão negativamente os sistemas naturais e humanos, tanto urbanos quanto rurais.

                As mudanças projetadas no ciclo da água terão impactos na agricultura, na produção de energia e nos usos urbanos, com eventual disputa entre eles. O uso agrícola da água aumentará globalmente, como consequência do aumento da população e das mudanças nas dietas, mas será muito amplificado com o aumento da necessidade de suplementação de água, devido às mudanças climáticas. Prevê-se que em todo o mundo haverá o esgotamento de mananciais de águas subterrâneas, no longo prazo. O aumento das inundações e secas, juntamente com o estresse por calor, terá um impacto adverso na disponibilidade de alimentos e nos seus preços, resultando em aumento da desnutrição no Sul e Sudeste Asiático.

                A elevação do nível do mar, combinada com padrões de chuva alterados, aumentará a inundação costeira e o uso da água, com aumento dos conflitos de alocação entre setores dependentes da água, como agricultura, consumo humano direto, saneamento e energia hidrelétrica

 

Tema 5: Em todos os setores e regiões, os impactos e custos de adaptação nos mercados e fora deles, serão menores com aumento de temperatura até 1,5°C em comparação com 3°C ou níveis mais altos de aquecimento global. Estimativas recentes de danos econômicos globais decorrentes das mudanças climáticas são, em geral, mais altas do que as estimativas anteriores. No entanto, a amplitude nas estimativas da magnitude desses danos é substancial e não permite que um valor médio confiável seja estabelecido. Danos não comerciais e não econômicos e impactos adversos nos meios de subsistência estarão concentrados em regiões e populações que já são mais vulneráveis. Fatores socioeconômicos e desenvolvimento mais inclusivo determinarão em grande parte a extensão desses danos.

                Sem limitar o aquecimento a 1,5°C, projeta-se que muitos dos principais riscos se intensifiquem rapidamente em quase todas as regiões do mundo. Isso deverá causar danos a ativos e infraestrutura, com perdas para setores econômicos, consequentemente acarretando grandes custos de recuperação e adaptação. Riscos graves são mais prováveis em regiões em desenvolvimento, que já são mais quentes e em regiões e comunidades com grande parte da força de trabalho empregada em setores altamente expostos (agricultura, pesca, silvicultura, turismo, trabalho ao ar livre). Em níveis mais altos de aquecimento, os impactos climáticos representarão riscos para os mercados financeiro e de seguros, especialmente se os riscos climáticos forem internalizados de forma incompleta, com implicações adversas para a estabilidade dos mercados.

 

Tema 6: Os riscos em cascata e os transfronteiriços dão origem a novos e inesperados tipos de riscos. Eles exacerbam os estressores existentes e restringem as opções de adaptação. Estima-se que eles se tornarão grandes ameaças para muitas áreas como, por exemplo, cidades costeiras. Alguns impactos em cascata ocorrerão localmente, outros estarão espalhados por setores e sistemas socioeconômicos e naturais, existindo ainda aqueles que podem ser impulsionados por eventos em outras regiões, atingindo o comércio e fluxos de commodities e bens, por meio de disrupções nas cadeias de suprimentos.

                As mudanças climáticas comprometerão a segurança alimentar por meio de múltiplos caminhos. Riscos agravados para a saúde e os sistemas alimentares (especialmente em regiões tropicais) são esperados a partir de reduções simultâneas na produção de alimentos na agricultura, pecuária e pesca. Estima-se perda de produtividade do trabalho na agricultura relacionada ao calor; aumento da mortalidade relacionada ao aumento de temperatura; contaminação de frutos do mar; desnutrição e inundações decorrentes do aumento do nível do mar. O tamanho das populações desnutridas aumentará por conta de impactos diretos na alimentação, resultado do efeito negativo das mudanças climáticas na produção, com impactos em cascata nos preços dos alimentos e na renda familiar, reduzindo o acesso a alimentos seguros e nutritivos. Espera-se um aumento dos riscos de consumo de alimentos aquáticos devido à contaminação por aflatoxinas em regiões de latitudes mais altas; proliferação de algas nocivas e poluentes orgânicos persistentes e metilmercúrio, com riscos grandes para comunidades com alto consumo de frutos do mar.

                Os perigos e riscos entrelaçados, que aumentam com o aquecimento global, incluem o aumento da frequência de ondas de calor e secas simultâneas, associados ao alto risco de incêndio e inundações, resultando em riscos crescentes e mais complexos para a agricultura, recursos hídricos, saúde humana, mortalidade, meios de subsistência, assentamentos e infraestrutura. Por exemplo, prevê-se que o calor e a seca reduzam substancialmente a produção agrícola e, embora a irrigação possa reduzir esse risco, sua viabilidade é limitada pelo comprometimento dos recursos hídricos e pela competição pela alocação da água entre setores demandantes concorrentes.

 

Tema 7: As tentativas de adaptação em ecossistemas naturais e manejados incluem semeadura em épocas de menor risco para o desenvolvimento das cultuas; mudanças nas variedades das culturas; melhoria do manejo do solo e gestão da água para gado e cultivos; restauração de processos costeiros e hidrológicos; pesquisa e desenvolvimento de genótipos adaptados ao calor e seca; agrossilvicultura e realocações manejadas de espécies de alto risco. Essas medidas podem aumentar a resiliência, a produtividade e a sustentabilidade dos sistemas naturais e alimentares lesados por mudanças climáticas. O custo e as barreiras financeiras limitam a implementação das opções de adaptação em ecossistemas naturais, agricultura, pesca, aquicultura e silvicultura, uma vez que as estratégias de financiamento dependem de variáveis aleatórias no complexo sistema do clima.

                As evidências de má adaptação estão aumentando em alguns setores e sistemas, destacando que respostas inadequadas às mudanças climáticas geram vulnerabilidade, exposição e riscos que são difíceis e caros de mudar a posteriori, exacerbando as desigualdades sociais já existentes. A má adaptação ocorre por muitas razões, incluindo conhecimento inadequado, planejamento e implementação de governança restrito ao curto prazo, fragmentado e não inclusivo. As decisões políticas que ignoram os riscos de efeitos adversos podem agravar os impactos e as vulnerabilidades às mudanças climáticas.

 

Tema 8: Várias opções de adaptação nos setores de disponibilidade de água, agricultura e alimentos são viáveis, com vários benefícios, alguns dos quais são eficazes na redução dos impactos climáticos. As respostas de adaptação reduzem os riscos climáticos futuros com um aquecimento de 1,5°C, mas a eficácia diminui acima de 2°C. A resiliência é fortalecida pela adaptação baseada em ecossistemas e gestão sustentável de recursos de espécies terrestres e aquáticas. As estratégias de intensificação agrícola produzem benefícios, mas com compensações e efeitos socioeconômicos e ambientais negativos. Competição, trade-offs e conflito entre as prioridades de mitigação e adaptação aumentarão com os impactos das mudanças climáticas. Soluções integradas, multissetoriais, inclusivas e orientadas para sistemas reforçam a resiliência no de longo prazo, se forem associadas com políticas públicas de apoio.

                A eficácia futura da adaptação para agricultura e sistemas alimentares diminui com o aumento do aquecimento. As respostas de adaptação, atualmente conhecidas, geralmente funcionam de forma mais eficaz a 1,5°C do que a 2°C ou mais, com riscos crescentes de permanecerem mesmo após a adaptação, em níveis de aquecimento mais altos. A expansão da irrigação enfrentará limites crescentes devido à disponibilidade de água acima de 1,5°C, com uma duplicação potencial dos riscos regionais para a disponibilidade de água de irrigação entre 2°C e 4°C.

                As opções de adaptação que promovem a intensificação da produção têm sido amplamente adotadas na agricultura, mas com potenciais efeitos negativos. A intensificação agrícola pode assegurar o cumprimento de metas de segurança alimentar e meios de subsistência de curto prazo, mas ainda restam dúvidas sobre seus impactos de médio e longo prazos sobre a biodiversidade e serviços ecossistêmicos. A irrigação é amplamente utilizada e eficaz para estabilidade do rendimento das culturas, mas com vários resultados negativos, incluindo conflitos por demanda de água, esgotamento de água subterrânea, aumento da salinidade do solo, aumento das desigualdades e perda de meios de subsistência dos pequenos produtores rurais com governança fraca e pouco apoio de políticas públicas.

                O melhoramento genético, seja o clássico ou com apoio de ferramentas de biotecnologia, pode introduzir características que adaptam as culturas às mudanças climáticas. Melhorias genéticas têm o potencial de aumentar a resiliência climática nos sistemas de produção de alimentos, razão pela qual devem ser fortemente incentivadas.

 

Tema 9: Estratégias multissetoriais integradas, que abordam as desigualdades sociais (gênero, etnia) e proteção social de grupos de baixa renda, aumentarão a eficácia das respostas de adaptação para uso da água e para segurança alimentar. Múltiplos fatores que interagem entre si ajudam a garantir que as comunidades tenham água e segurança alimentar, incluindo o combate à pobreza, desigualdades sociais, conflitos violentos, prestação de serviços sociais como água e saneamento, redes de segurança social e serviços ecossistêmicos vitais. As respostas de longo prazo incluem o fortalecimento de serviços ecossistêmicos e dos mercados locais e regionais. No contexto urbano, as políticas que levam em conta a inclusão social na governança e os direitos aos espaços verdes urbanos aumentarão o potencial da agricultura urbana para a segurança alimentar e hídrica e preservação dos serviços ecossistêmicos.

                Um foco no risco climático por si só não permite uma resiliência climática efetiva. A consideração de fatores não climáticos nas formas de adaptação pode reduzir os impactos climáticos nos sistemas alimentares, assentamentos humanos, saúde, água, economias e meios de subsistência. Saúde, educação e serviços sociais básicos fortalecidos são vitais para melhorar o bem-estar da população e apoiar o desenvolvimento resiliente ao clima. As informações aos agricultores, fornecidas por serviços de informação climática, estão ajudando os agricultores a entenderem o papel do clima versus outros fatores nas mudanças de produtividade da agropecuária. Um setor de seguros voltado ao tema das mudanças climáticas ajuda a criar resiliência e contribui para a adaptação, protegendo os ativos dos agricultores diante de grandes choques climáticos, promovendo o acesso ao crédito e apoiando a adoção de tecnologias e práticas agrícolas aprimoradas.

 

Tema 10: A adaptação baseada em ecossistemas reduz o risco climático em todos os setores, proporcionando co-benefícios sociais, econômicos, de saúde e ambientais. A dependência humana direta de serviços ecossistêmicos, proteção e restauração de ecossistemas, agricultura de conservação, manejo sustentável de terras e gestão integrada de bacias hidrográficas apoiam a resiliência climática.

                As perspectivas de transformação para o desenvolvimento resiliente ao clima aumentam quando os principais atores da governança trabalham juntos de forma inclusiva e construtiva para criar um conjunto de condições propícias apropriadas. Essas condições facilitadoras incluem governança efetiva e fluxo de informações, estruturas de políticas que incentivam soluções de sustentabilidade; financiamento adequado para adaptação, mitigação e desenvolvimento sustentável; capacidade institucional; ciência, tecnologia e inovação; monitoramento e avaliação de políticas, programas e práticas de desenvolvimento resiliente ao clima e cooperação internacional.

                O investimento em inovação social e tecnológica poderia gerar o conhecimento e empreendedorismo necessários para catalisar as transições do sistema e sua transferência. A implementação de políticas que incentivam a implantação de tecnologias e práticas de baixo carbono em setores específicos, como energia, construções e agricultura, podem acelerar a mitigação das emissões de gases de efeito estufa e a implantação de infraestrutura resiliente ao clima, em áreas urbanas e rurais. O engajamento cívico é um elemento importante para construir um consenso social e reduzir as barreiras à ação de adaptação, mitigação e desenvolvimento sustentável.

 

Concluindo

                O crescimento majoritariamente insustentável das últimas décadas, lastreado em atividades que lançaram na atmosfera bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (GEE), está cobrando o seu preço. Não será possível reverter a totalidade dos impactos negativos das mudanças climáticas, muitos deles ocorrerão independentemente de como agirmos a partir de agora.

                Mas, de acordo com o relatório do IPCC, dois caminhos paralelos e entrelaçados são fundamentais para mitigação dos efeitos: o primeiro é reduzir, acentuadamente, as emissões de GEE, cumprindo integralmente os compromissos firmados pelos países nos acordos internacionais; o segundo é a adoção de práticas de mitigação, para reduzir os impactos que virão.

                Em ambos os casos não há alternativa a não ser volumosos e continuados investimentos em Ciência, para que as informações e as tecnologias apropriadas possam ser desenvolvidas e utilizadas em benefício da Humanidade.

 

Décio Luiz Gazzoni é Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa e membro do Conselho Agrossustentável

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