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Dilma se alinha com ruralistas em questão de terras indígenas

Presidente determinou que governo pare de desapropriar


A presidente Dilma Rousseff determinou que o governo pare de desapropriar terras agrícolas para a criação de novas reservas indígenas, segundo fontes oficiais, em uma decisão que tem profundas implicações para o país.

O Brasil destinou nas últimas décadas 13 por cento do seu território para tribos indígenas. Vastas áreas adicionais, inclusive áreas valorizadas para a produção de soja, carne, açúcar e outros produtos, estão sob consideração para possíveis novas transferências.


A política já foi considerada como uma das mais progressistas do mundo, mas nos últimos meses vinha causando crescentes atritos, pois milhares de agricultores foram expulsos das terras que cultivavam, em alguns casos havia décadas.

Dilma tem frequentemente favorecido mais os interesses ditos "desenvolvimentistas" do que as preocupações mais humanitárias, e agora acredita que a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi longe demais na sua atribuição de determinar quais terras devem ser reservadas aos índios, segundo duas fontes governamentais graduadas.

Dilma orientou o governo a evitar a aprovação de novas demarcações de terras indígenas no futuro próximo, segundo as duas fontes, que falaram à Reuters sob anonimato.

Solicitações já encaminhadas serão estudadas com maior rigor do que antes, e isso terá como consequência uma dramática desaceleração na criação de novas terras indígenas, segundo essas fontes.

"Ela decidiu fazer o que for possível para blindar os agricultores", disse uma fonte. "É uma mudança total."

A nova diretriz do governo facilita a expansão do cinturão agrícola do país, importante motor da prosperidade nas últimas décadas e fonte importante de matérias-primas para a China, o Oriente Médio e outras regiões.

A sucessão de fatos que levou à nova postura começou em 29 de abril, quando Dilma faria um discurso aparentemente rotineiro em Mato Grosso do Sul.

Quando ela subia ao palanque em Campo Grande, muitos dos 2.000 agricultores presentes começaram a vaiá-la. A presidente pareceu instantaneamente surpresa e então conseguiu sorrir.

"Gente, eu acho bom vocês gritarem... Democracia é isso aí", disse Dilma, enquanto muitos presentes continuavam a vaiá-la. "Não tem problema, não."

Reservadamente, porém, Dilma ficou perturbada.

"O que foi aquilo?", perguntou ela ao deixar o palanque, segundo um assessor presente.

Ela exigiu para a manhã seguinte um relatório sobre o que tanto incomodava a multidão. Em uma semana, a política governamental mudou.

RISCO DE MORTES

As tensões entre agricultores e índios existem há anos, mas explodiram nos últimos meses, quando os dois grupos, por diferentes razões, pleiteiam mais terras.

Cerca de 0,4 por cento da população brasileira é oficialmente considerada indígena, embora uma proporção muito maior tenha sangue índio. A Constituição de 1988 garante aos índios os "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" e diz que o Estado é responsável por demarcá-las.

Sucessivos governos cumpriram isso, e as alocações foram muito mais generosas em termos de área do que nos Estados Unidos e na maioria dos outros países latino-americanos.

No entanto, até recentemente, a maior parte dessas terras ficava em áreas florestais pouco habitadas, principalmente na Amazônia. Algumas tribos se queixavam de serem excluídas de áreas valorizadas, sobre as quais tinham reivindicações históricas igualmente fortes.

Enquanto isso, a agricultura brasileira cresceu fortemente nos últimos anos, em grande parte graças ao apetite asiático por matérias-primas. Só a área para o plantio de soja cresceu cerca de 40 por cento na última década.

No mês passado, representantes indígenas invadiram o plenário da Câmara dos Deputados em protesto contra a Proposta de Emenda à Constituição 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcar as terras indígenas.

A ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, anunciou que o Executivo está trabalhando para, dentro das limitações legais, esclarecer o processo de demarcação e que além da Funai serão ouvidos o Ministério da Agricultura, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério das Cidades, entre outros órgãos.

RECUPERANDO TERRAS, 150 ANOS DEPOIS

Dilma estava ciente das disputas, mas a força do protesto do mês passado em Mato Grosso do Sul a convenceu de que a situação havia alcançado um novo grau de urgência. O relatório subsequente dos seus assessores traçou um quadro claro de abusos por parte da Funai, segundo as fontes governamentais.


Uma dessas fontes disse que Dilma ficou "indignada" de saber que antropólogos da Funai haviam recebido praticamente carta branca para determinar quais terras desapropriar, sem levar em consideração se essas áreas eram produtivas.

No Rio Grande do Sul, a Funai está estudando a desapropriação de cerca de 30 áreas, inclusive uma que descendentes de colonos europeus controlam desde 1872, segundo Irineu Orth, diretor da seção gaúcha da Aprosoja, entidade que reúne produtores de milho e soja.

"Garanto a vocês que em 1988, quando o Estado foi informado de que deveria reservar terras para os indígenas, não havia um só índio na maioria dessas áreas", disse Orth.

Os ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, além da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), agora também se pronunciarão sobre as terras a serem demarcadas.

"Precisamos escutar outras vozes", disse a ministra-chefe da Casa Civil em uma turbulenta audiência no Congresso onde ela anunciou as novas medidas, em 8 de maio.

"ENORME PASSO ATRÁS"

A sede da Funai, em Brasília, rejeitou repetidas solicitações para comentar o assunto, mas a associação dos seus funcionários divulgou nota na sexta-feira "repudiando" a atitude de Dilma e acusando a presidente de usurpar os direitos da Funai sobre a demarcação de terras indígenas.

Uilton Tuxá, chefe da tribo Tuxá, na Bahia, disse por telefone que a decisão de Dilma sobre a Funai foi "um enorme passo atrás para os povos indígenas no Brasil".

No mês passado, ele participou de um protesto no Congresso e agora ele diz que pretende se reunir com líderes locais do PT para tentar reverter a nova postura do governo.

Algumas organizações não-governamentais dizem que Dilma favorece consistentemente os interesses da iniciativa privada em detrimento de considerações mais "suaves", como o meio ambiente.

Mesmo antes da nova postura, a demarcação de terras no governo Dilma já vinha sendo mais lenta do que nos governos dos seus dois antecessores imediatos, segundo dados oficiais.

A implicação disso é que "só se deve demarcar terra ruim como indígena", disse Marcio Santilli, fundador da ONG Instituto Sócio-Ambiental e ex-presidente da Funai. Ele disse que a Embrapa e outros órgãos "não estão qualificados" para tomarem decisões sobre isso.

Outros, no entanto, argumentam que o que começou como um esforço nobre para corrigir erros históricos escapou ao controle no ano passado.

"Estou aplaudindo de pé", disse a juíza federal Eliana Calmon, ministra do Superior Tribunal de Justiça. Ela disse que o sistema anterior deixava aos juízes pouca margem para contestar as decisões da Funai, mesmo quando havia injustiças óbvias.

"Quando chega aqui, o que podemos dizer? Não somos antropólogos. Isso nos deixava de mãos totalmente atadas", disse ela.

Não está claro se a decisão de Dilma sobre a Funai, que foi altamente técnica, e não amplamente divulgada, será suficiente para acalmar os envolvidos.

Há apenas duas semanas, cerca de 70 agricultores foram à terra xavante Marãiwatsédé, em Mato Grosso, tentar retomar suas terras à força, segundo o coordenador regional da Funai, Paulo Roberto de Azevedo Jr.

"Alguns dos invasores tentaram voltar", disse ele, sem dar detalhes. "Eles foram contidos."

A ministra Eliana disse entender o dilema que os políticos enfrentam. "Você está lidando com cinco séculos de história", afirmou. "Realmente, pode-se dizer que tudo no Brasil é dos índios - então onde parar?"

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