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É hora de baixar os impostos dos cigarros?

Revisão tributária, sob estudo no Ministério da Justiça como estratégia para frear o contrabando, tem apoio de líderes do setor do tabaco


Após anos de perdas acumuladas pela cadeia produtiva do tabaco por conta da expansão desenfreada do contrabando, uma luz no fim do túnel se acendeu com a criação, pelo Ministério da Justiça, de um grupo de trabalho para discutir uma possível redução dos impostos que incidem sobre os cigarros produzidos no País. A medida, porém, gera controvérsia até entre as empresas do setor.

A criação do grupo, no fim de março, ocorreu na sequência da divulgação de números assustadores sobre o comércio irregular: segundo um estudo do Ibope, em 2018, mais da metade dos cigarros consumidos no Brasil tinham origem ilegal. Em algumas regiões do País a situação é ainda pior: no Mato Grosso do Sul, por exemplo, que é porta de entrada para cigarros do Paraguai, estima-se que mais de 80% do mercado esteja nas mãos do contrabando. Pela primeira vez, a evasão fiscal gerada pelo contrabando superou a arrecadação do governo federal com a fabricação regular de cigarros.

A pressão pela revisão tributária parte da tese, defendida por especialistas e agentes do setor de tabaco, de que não há como conter o contrabando se não diminuir a diferença de preço no mercado entre o cigarro regulado, altamente tributado, e o ilegal. O mesmo estudo do Ibope apontou que, enquanto o primeiro custa em média hoje R$ 7,46 – efeito de uma carga tributária que chega a, em média, 71% –, o segundo custa em média R$ 3,31. Não por acaso, das dez marcas de cigarro mais consumidas no Brasil hoje, quatro são paraguaias – incluindo as duas que ocupam o topo do ranking, Eight e Gift.

Segundo o presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), Edson Vismona, embora o trabalho de repressão ao contrabando pelos órgãos policiais seja importante, é preciso atacar não apenas a oferta mas também a demanda. Isso significa tornar o cigarro regulado mais competitivo. “Não adianta ficar apenas abordando caminhão em estrada, porque as pessoas compram esses produtos. Estamos entregando o mercado e o consumidor para o contrabandista, o que é inaceitável”, observa. Na mesma linha, o presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (Sinditabaco), Iro Schünke, considera a situação atual insustentável. “Naturalmente, uma diferença tão grande no preço torna a concorrência desleal, por isso essa discussão é importante”, disse.

Em contrapartida, entidades antitabagistas alertam sobre os riscos para a saúde pública de baratear o cigarro regulado, justamente em um momento em que as grandes empresas de tabaco apostam em produtos alternativos e com menos danos, como os cigarros eletrônicos e os dispositivos de tabaco aquecido. Uma das líderes do mercado, a Philip Morris Brasil, se posicionou contra a medida.

Como seria?
Para as entidades que defendem a medida, a saída não está necessariamente em uma redução dos impostos sobre os cigarros – até porque isso poderia afrontar protocolos internacionais de saúde pública dos quais o Brasil é signatário –, mas sim em uma redistribuição da carga tributária. Hoje, todos as categorias de cigarros regulares disponíveis no mercado estão sujeitas às mesmas alíquotas. Assim, independente do preço, o imposto recolhido é o mesmo.

A ideia é pesar a tributação sobre os cigarros mais caros e aliviar sobre os mais baratos, que são os grandes alvos do contrabando. Isso e mais a revogação da regra do preço mínimo permitiriam à indústria formal disponibilizar um produto a um preço popular, que seria mais competitivo, e o Poder Público não perderia em arrecadação.

O que pensam as indústrias

“O que vai haver é uma remigração de consumidores”
Para o diretor de Assuntos Corporativos e Comunicação da Japan Tobacco International (JTI), Flávio Goulart, não há como vislumbrar uma reversão do quadro atual sem uma revisão da política tributária. Na sua avaliação, a repressão que é feita hoje pelos órgãos policiais nas fronteiras e rodovias tem o efeito de “enxugar gelo que não vai levar a canto nenhum”. De acordo com ele, baratear o cigarro regulado não vai gerar um aumento no número de fumantes porque hoje já existe uma grande demanda que recai sobre o mercado irregular. “O mercado está aí. É um produto barato, que não tem controle sanitário e não gera divisas para o País. O que vai haver é uma remigração dos consumidores para o cigarro regulado”, completou. A JTI inaugurou no ano passado uma cigarreira em Santa Cruz.

“O pobre não está fumando o cigarro da indústria formal”
Embora reconheça que o combate ao contrabando não passa por uma solução única,  o diretor jurídico e de Relações Externas da Souza Cruz, Rinaldo Zangirolami, defende que não há como evitar a revisão da política tributária. Zangirolami observa que, mesmo com a intensificação da repressão, o comércio ilegal segue crescendo, o que indica que é preciso partir para outros caminhos. O executivo também rejeita a tese de que reduzir o preço do cigarro regulado levaria a um aumento do tabagismo. “O pobre não está fumando o cigarro da indústria formal. A situação tributária está levando a população a uma situação de informalidade”, observou. Desde o fechamento da fábrica em Cachoeirinha, na Região Metropolitana, em 2016, a Souza Cruz mantém atualmente apenas uma cigarreira em Uberlândia (MG).

“Não se resume a uma questão tributária”
Na contramão das demais fumageiras, a Philip Morris Brasil critica a possibilidade de redução da tributação sobre cigarros. De acordo com o diretor de Assuntos Corporativos da empresa, Fernando Vieira, a política de combate ao contrabando não deve passar por alternativas que resultem em redução do preço do produto. “O problema não se resume a uma questão tributária”, opinou. Conforme Vieira, as margens de lucro praticadas pelo mercado ilegal são muito altas, o que significa que, se o cigarro regulado baixar de valor, os preços dos produtos do contrabando poderiam ser facilmente reduzidos. “Reduzir tributos e preços poderia impactar negativamente toda a cadeia produtiva, desde a indústria, passando por varejistas, distribuidores e até produtores”, acrescenta. A PMB mantém uma fábrica de cigarros em Santa Cruz desde 2013.

Entenda o problema

1 - O cigarro é um dos produtos mais tributados do Brasil. Sobre ele incidem impostos federais (IPI e PIS/Cofins) e estaduais (ICMS). A carga tributária varia de acordo com o Estado, mas chega em média a 71%. Além disso, os cigarros estão sujeitos à lei do preço mínimo, que hoje é de R$ 5,00. Com isso, o preço médio do cigarro regulado chega a R$ 7,46.

2 - Já o preço médio do cigarro paraguaio é de R$ 3,31. Essa diferença se dá por dois motivos. Primeiro, a tributação no Paraguai é muito inferior – em torno de 40% – e o custo de produção é baixo. Além disso, como o produto ingressa em território brasileiro de forma ilegal, não fica sujeito a nenhuma tributação.

3 - Com isso, o contrabando vem crescendo em ritmo acelerado. No ano passado, 54% dos cigarros consumidos no Brasil tinham origem ilegal. Enquanto a arrecadação do governo federal com a produção regular de cigarros foi de R$ 11,4 bilhões, a evasão fiscal com o contrabando chegou a R$ 11,5 bilhões. Ou seja, as perdas sofridas pelo Poder Público foram superiores ao que arrecadou.

4 - O cenário põe em xeque a política que vem sendo levada a cabo desde a década de 1990 pelo governo federal para inibir o consumo de cigarros e que inclui, dentre outros, a tributação pesada e o preço mínimo. Entidades e indústrias alertam que, na prática, em vez de reduzir o número de fumantes, o que acontece é uma migração de consumidores do produto regulado para o produto ilegal – que não passa por nenhum controle sanitário e não gera receita para o País.

 

DUAS VISÕES

“O contrabando, sim, estimula o consumo”
A revisão tributária como forma de combater o comércio ilegal de cigarros é a tese defendida no estudo A lógica econômica do contrabando, divulgado em 2017 pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf). Segundo o presidente do instituto, Luciano Stremel Barros, a medida seria eficiente na medida em que atacaria a sustentação do mercado irregular, que é a elevada margem de lucro obtida pelos grupos criminosos.

O estudo mostra que foi justamente com redução de impostos que o contrabando de produtos de informática despencou nos últimos anos. Até o início dos anos 2000, esses produtos estavam no topo do ranking das mercadorias mais contrabandeadas. Essa situação só foi revertida em 2005, quando foi criada a chamada Lei do Bem, que reduziu os impostos sobre o setor. Os resultados são visíveis: enquanto as apreensões de produtos irregulares, que em 2005 chegaram a mais de 10 milhões de unidades, caíram a menos de 2 milhões em 2016, a produção formal cresceu 539% entre 2005 e 2013. “O contrabando só existe porque dá lucro. Se tivermos um produto formal com preço mais baixo, as pessoas deixarão de consumir o contrabando e passarão a consumir um produto formal”, avalia Barros.

Na visão de Barros, a política de aumento de preço só é efetiva para inibir o consumo quando não há uma alternativa ao produto regulado. “O fumante que consome as categorias de cigarros mais baratos encontra o substituto contrabandeado em qualquer local. Se o produto formal fica caro, o contrabando vem como opção imediata. O contrabando, sim, estimula o consumo.”

“Não existe cigarro que faça menos mal”
Para as entidades antitabagistas, que defendem a tributação pesada como forma de inibir o consumo de cigarros, a possibilidade de revisão dessa política é motivo de preocupação. Segundo o advogado Felipe Mendes, que integra a Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq), essas medidas são recomendadas pelo Banco Mundial desde os anos 1990 e consideradas as principais responsáveis pela redução da população fumante nas últimas décadas no Brasil. “Existe uma vasta literatura sobre o efeito do aumento de impostos sobre cigarros e seus preços como uma estratégia para redução do tabagismo, especialmente para reduzir a iniciação de jovens no tabagismo e nas populações de menor renda e escolaridade”, observa.

Conforme Mendes, o ideal é que o País fortaleça a política tributária sobre cigarros e, em paralelo, adote providências para combater o contrabando e seus efeitos sobre a segurança pública e a economia. “Não existe cigarro que faça menos ou mais mal à saúde. Todo e qualquer cigarro, seja ele de origem lícita ou ilícita, gera doenças graves, incapacitantes e mortais para quem fuma e para quem se expõe à fumaça do tabaco”, afirma.

Na visão da entidade, a saída para reduzir o comércio ilegal de cigarros passa por acordos de cooperação internacional na área de segurança e aduanas como forma de enfrentar o crime organizado e a corrupção. “Essa é a resposta que precisa ser dada, e não a redução de impostos sobre um produto que gera um prejuízo anual de R$ 56 bilhões para o Brasil.”

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