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Fora de controle

O fungo causador da ferrugem asiática ganhou a guerra contra os agroquímicos e avança sobre lavouras de soja em todo o país


Em fins de fevereiro de 2017, quando o agricultor Ricardo Haizman, de Tupanciretã, no centro-oeste do Rio Grande do Sul, percorria a lavoura de soja, notou que algumas folhas estavam pontilhadas com pequenas manchas marrons. “Até me deu um frio na barriga quando percebi que era ferrugem, mas o que me incomodou foi que aquela área tinha sido tratada com várias aplicações de fungicidas. Não era para ter um fungo vivo naquele talhão.” Ele conta que, na virada de março, a lavoura toda estava tomada pela ferrugem. “Quase não se via o verde, estava tudo ‘preteado’.” O agricultor gaúcho se via diante de um problema que vem causando “frios na barriga” de produtores de soja de todo o país, incluindo os que cultivam em regiões quentes do Centro-Oeste e do Nordeste. O fungo Phakopsora pachyrhizi, causador da ferrugem, acaba de romper a barreira de proteção das carboxamidas, o mais novo e, em tese, inabalável grupo de fungicidas antiferrugem. Ainda sob o impacto da notícia ruim, especialistas acham que a queda do último bastião de proteção contra a doença pode colocar em xeque o futuro da cultura no Brasil. E já buscam saídas.

A ferrugem asiática é considerada uma das doenças mais severas sobre a soja e pode ocorrer em qualquer estágio (fase) do desenvolvimento vegetativo. A planta infectada apresenta desfolha precoce, comprometendo a formação e o enchimento das vagens, reduz o peso dos grãos e exige mais ações de combate, com impacto no custo da lavoura. Nas diversas regiões brasileiras onde a ferrugem asiática foi relatada em nível epidêmico, os danos variam de 10% a 80% da produção Na região de Tupanciretã, segundo Haizman, as perdas oscilaram entre 2% e 12% em cultivos, que se estendem por 150 mil hectares. “Em alguns talhões da minha lavoura, o estrago chegou a 20% ou mais. Foi assustador, principalmente porque na safra anterior não teve ferrugem nenhuma.” Ele conta que plantou entre o final de outubro e o início de novembro e fez pulverizações preventivas, como na safra anterior. Na outra safra funcionou, mas nesta foi um fracasso.”

Situação crítica - Nos dias 3 e 4 de abril, fitopatologistas do Eagle Team, grupo de elite formado pela empresa UPL e que tem trabalhado intensamente em pesquisas na soja em todas as regiões do Brasil, sentaram-se à mesa no hotel Royal Palm Plaza, em Campinas, para debater a nova situação. As discussões foram permeadas por duas interrogações: até quando a soja tratada com os agroquímicos atuais resiste à ferrugem mantendo a produtividade em patamar competitivo, e, em quantos anos a indústria estará em condições de oferecer ao agricultor um novo produto capaz de frear o avanço do fungo resistente. Ficou claro que não haverá novo grupo químico em menos de oito anos, sendo que o prazo pode chegar a uma década e meia. Quando se falou em culpados, o grupo se dividiu entre os que apontaram o dedo para a indústria, porque teria trazido ao mercado produtos de baixa eficiência, e os que jogaram o ônus sobre o produtor, que teria dado prioridade ao lucro em detrimento das boas práticas de manejo da lavoura.

As discussões, obviamente, transcorreram a portas fechadas. “Ninguém do mundo da soja está muito tranquilo neste momento e pode ser que tenhamos aqui uma lavanderia de roupa suja”, disse, antes, um dos organizadores, convidando a reportagem da Agro DBO a sair do salão. Fato é que já não são raras as lavouras contaminadas por fungos resistentes entre os 33,7 milhões de hectares cultivados em todo o país. A reunião em Campinas foi precedida pelo anúncio do FRAC, sigla em inglês do Comitê de Ação à Resistência de Fungicidas, no dia 8 de março passado, de que o mais novo grupo químico utilizado para controle da ferrugem asiática – as carboxamidas, ou ISDHs – tinha sido vencido pelo fungo Phakopsora pachyrhizi. O problema se avulta quando se sabe que outros dois grupos químicos usados contra a ferrugem – os inibidores da desmetilação (IDM, ou triazóis), e os inibidores da quinona externa (IQe, ou estrobilurinas), já tiveram a menor eficácia de controle confirmada para o fungo no Brasil. Entrevistada durante a reunião, a pesquisadora Cláudia Vieira Godoy, da Embrapa Soja, alertou que o problema é preocupante devido ao grande potencial de perdas de produtividade. “O fungo vem evoluindo, é natural, e hoje os patógenos estão resistentes aos principais produtos sistêmicos. Só não esperávamos que o rompimento da resistência das carboxamidas, que é o grupo mais novo para a ferrugem, acontecesse tão rápido. Esse novo grupo tinha entrado no mercado em 2014.” Apesar de constatado em algumas áreas nesta última safra, o problema ainda não se generalizou, segundo ela. “Os focos de resistência ainda estão sendo mapeados, mas se observa que o Mato Grosso do Sul, o Paraná e o Rio Grande do Sul têm predominância desses isolados mais resistentes.” São regiões que plantam a soja safrinha, em que leguminosa sucede a própria soja, exigindo um número maior de aplicações de fungicidas, como explica. “Isso acaba antecipando a seleção. A soja safrinha está proibida em algumas partes do Brasil, mas a gente tem o Paraguai que também faz, e o fungo não respeita fronteira.’’

A pesquisadora lembra que em muitas regiões as carboxamidas ainda estão funcionando muito bem. “Embora estejamos vendo uma resistência cruzada, as moléculas não foram afetadas da mesma forma. Ainda não sabemos como vai ser na próxima safra. A gente tem a agravante da soja após feijão, que recebe um grande número de aplicações e favorece a resistência. A situação pode ficar mais crítica com aumento na frequência das mutações. O fungo se espalha com facilidade e pode subir para a região central, onde ainda não tem presença tão forte.” Segundo ela, é recomendável que os estados proíbam a soja safrinha, como fez o Mato Grosso, maior produtor do país, para proteger sua economia. “O Ministério da Agricultura não pode proibir, mas as secretarias estaduais podem fazer isso, em diálogo com o produtor, que deve aproveitar a entressafra para se preparar. O principal insumo na nova safra deixa de ser a semente ou o fungicida, e passa a ser a informação. O que vale para todos é evitar soja safrinha, fazer apenas as pulverizações necessárias, rotacionar os fungicidas e plantar mais cedo, usando multissítios para proteger o fungicida.”

Como outros pesquisadores, Cláudia Godoy não acredita em soluções químicas rápidas. “As quatro principais empresas do setor estão pesquisando, mas não vamos ter mais moléculas que tenham 80% de proteção. O Ministério da Agricultura vem fazendo uma reavaliação dos fungicidas. A empresa não pode informar que seu produto funciona, quando ele não funciona. Vários fungicidas serão suspensos para a próxima safra.” Portaria do Ministério da Agricultura publicada em dezembro de 2016 suspendeu a recomendação de uso de 63 fungicidas utilizados no controle da ferrugem, após uma avaliação constatar que tinham baixa eficácia contra o fungo. O trabalho da comissão continua em 2017, com a avaliação de formulados e misturas. No caso das carboxamidas, Cláudia disse que muitos produtores foram surpreendidos, pois contavam que a lavoura estivesse protegida com os produtos aplicados. “O que a gente esperava era que as empresas tivessem um posicionamento mais proativo para avisar o produtor sobre o que fazer, mas estou vendo muito produtor ainda perdendo.”

Para o pesquisador Erlei de Melo Reis, mestre em fitopatologia, também presente no encontro do Eagle Team, menos de 10% dos produtores de soja aplicaram fungicidas com protetores nesta safra. “Quanto mais aplicarmos as misturas sem protetores multissítios, mais vamos ajudar a seleção de moléculas resistentes. Controle eficiente é aquele que cobre ao menos 80% da lavoura, no entanto, a maioria dos produtos está com proteção abaixo de 60%, alguns com 40%. Minha preocupação é em quantas safras nós vamos ter uma solução. Das grandes empresas, nenhuma trabalha com soluções prontas com protetores. É preciso uma pressão do governo para que se agilize isso.” Conforme o pesquisador, a resistência de fungos é uma resposta natural desses organismos a uma ameaça externa à sua sobrevivência, no caso o fungicida. Quanto maior o número de aplicações, maior a pressão para seleção de populações menos sensíveis aos seus componentes químicos. “Há consenso de que o grande número de aplicações, principalmente em semeaduras tardias, e na soja após soja, é um dos principais fatores para a rápida redução de eficiência dos produtos com sítio específico. O uso de multissítios desde a primeira aplicação dispersaria a seleção, retardando a resistência do fungo ao princípio ativo.

O pesquisador Rafael Cabeda, concorda. Em sua opinião, a situação é gravíssima. Segundo ele, não se trata mais de evitar o desenvolvimento da resistência, mas, sim, de recuperar a eficiência de controle. “Para tanto, a melhor estratégia é a construção do controle, ou seja, edificar a eficiência com a utilização de várias ferramentas, utiliproduzando- as de forma conjuntas e inter-relacionadas. Dada a resistência do fungo aos triazóis, estrobilurinas e carboxamidas, os fungicidas multissítios se tornaram ferramenta importante para o manejo da ferrugam asiática”. Outra possibilidade para o manejo de resistência é a combinação dos multissítios com compostos indutores de resistência na planta e/ou produtos sanitizantes (antiesporulantes)”.

A ferrugem asiática apareceu no Brasil em 2001. O Consórcio Antiferrugem, parceria público-privada de combate à doença, estima o custo médio anual da doença em US$ 2 bilhões, inclusos os gastos com fungicidas e as perdas de produção. Em novembro de 2016, foi encontrado o primeiro foco de ferrugem resistente aos fungicidas numa lavoura de União do Sul, norte do Mato Grosso. No início de março, os focos de resistência se espalhavam pelos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Falta informação - O consultor e especialista em aplicação, Paulo César Bettini, da Terra Pesquisa e Treinamento Agrícola, de Primavera do Leste (MT), aponta falhas no uso dos fungicidas e teme pela expansão da ferrugem no estado. “A gente acompanha a reação dos fungicidas no controle das doenças em milho, soja e algodão há alguns anos, e percebe que as falhas de manejo, problemas no monitoramento da lavoura e falta de qualidade na pulverização são determinantes para a perda no controle dessas doenças. E isso está acontecendo com muita frequência.” Ele conta que, na região do Cerrado, o que está sendo feito é o uso contínuo da mesma molécula, favorecendo a resistência. “Algumas empresas indicam o uso de duas ou três aplicações seguidas de triazol ou de carboxamidas, mas não falam em inserir um produto protetor, com ação multissítio para defender essas moléculas. Elas são muito importantes para nós, e a forma de defender é não usar a carboxamida sozinha e, sim, em mistura com produtos protetores. Aumenta o custo, sim, mas é melhor do que ter perdas.

Na avaliação de Bettini, o produtor tem conhecimento prático da lavoura, mas falta informação de qualidade, que pode chegar através da pesquisa acadêmica e da consultoria. “Não tem como trabalhar com soja sem entender como funciona um triazol, uma carboxamida e um multissítio. Já tivemos, no Mato Grosso, perdas de produtividade em razão da ferrugem e os métodos precisam ser revistos para a próxima safra. O primeiro fator importante é a data da semeadura, pois semear mais cedo ajuda o controle. O segundo é usar cultivares de ciclo mais curto. O terceiro, que completa os dois anteriores, é o fungicida correto.” O consultor destaca que os três fatores devem ser usados de forma interagida. “Não dá para fazer como foi feito, entregar a sorte da lavoura à carboxamida e esperar um resultado que não veio. O momento exige mudanças no manejo. Nesta safra, quem não fez um bom manejo perdeu de 10% a 20% do potencial produtivo. Estamos falando do lucro do produtor. É um momento muito sério, podemos estar seguindo para um horizonte perigoso, se o agricultor não tiver um bom planejamento da lavoura.

A produtora e engenheira agrônoma Roseli Giachini, diretora da Aprosoja MT, contou que já foi detectada a perda de eficácia dos fungicidas mais novos contra ferrugem em áreas de cultivo de Campo Novo do Parecis, no centro-oeste de estado. “Tivemos alta pressão em razão do uso indiscriminado de fungicidas e do plantio de soja sobre soja. No final da safra e nos plantios mais tardios, percebemos que a ferrugem avançou. O fungicida é a nossa última forma de controle e o fungo está quebrando a resistência”, alertou. Foram vistos sintomas de ferrugem resistente também em áreas cultivadas em Campo Verde e Primavera do Leste, no sudeste do estado, entre elas, lavouras do Grupo Giachini, de sua família, grande produtor da região. “Existe a presença do fungo, mas fizemos um manejo adequado, com boa tecnologia de aplicação, e não houve perda. Este ano não foi de alta pressão, pois tivemos chuvas regulares. Num ano de mais chuvas, a pressão vai aumentar.” Além de respeitar o vazio sanitário, que na região vai de 15/6 a 15/9, ela recomenda o controle de plantas voluntárias (guaxas), que podem ser hospedeiras do fungo, e aplicações alternadas, com diferentes princípios ativos. “Embora a semeadura possa ser feita de 16 de setembro a meados de novembro, quanto mais tarde se planta, maior a exposição ao fungo.”

No sudoeste de São Paulo, principal região produtora do estado, os produtores fazem rotação de princípios ativos e usam protetores. “Estamos fazendo aplicação antes da instalação da ferrugem e dosando o controle. Se a doença se manifesta, entramos com o fungicida, sempre acompanhado do protetor, geralmente com o princípio ativo mancozeb. É uma convivência cautelosa com o fungo”, descreve o agrônomo Vandir Daniel da Silva, da unidade regional da secretaria estadual de agricultura. Segundo ele, a região sofreu ataques intensos de ferrugem na safra 2005/6 e, de dez anos para cá, os produtores vêm aliando um bom manejo com defensivos mais eficientes. A região cultiva 185 mil hectares, com produtividade média de 67 sacas/ha, cumpre o vazio sanitário (também de 15/6 a 15/9), faz a colheita até o início de maio e não planta soja safrinha. “O cultivo de milho ou trigo nesse período ajuda a controlar a ferrugem e também a mosca branca, outro problema da nossa região.”

Manejo inadequado - A pesquisadora Mônica Paulo Debortoli, coordenadora de fitopatologia do Instituto Phytus, sediado em Santa Maria (RS), acredita que o manejo inadequado está favorecendo da ferrugem. “Temos uma variabilidade muito grande dentro dos 33 milhões de hectares em termos de tecnologia de aplicação, de volume de calda, de quanto de ingrediente ativo efetivamente chega na planta, se não estou causando uma sub-dosagem, dessa forma afetando a absorção e causando uma pressão de seleção sobre o fungo. Aplicando uma dose que seja abaixo da letal eu tenho a chance de selecionar indivíduos que possam sobreviver e se multiplicar nas próximas gerações”. Mônica observou que o sistema de manejo, na maioria dos casos, não privilegia a performance dos fungicidas. “Não se respeitam os intervalos seguros de aplicação, a recomendação de não se fazer a mistura de tanque; a gente não monitora o pH da calda e tudo isso pode afetar a absorção. É preciso fazer a rotação de fungicidas para não expor determinado grupo químico. Também é preciso que a planta esteja numa condição fotossintética muito boa para que o fungicida fique disponível dentro os tecidos. A empresa comercializa o produto, mas é on farm (dentro da fazenda), no manejo correto, que ele expressa sua eficácia.

Para a pesquisadora, a grande preocupação atual da pesquisa é saber até onde o sistema produtivo da soja se sustenta nas condições atuais. “Temos uma tendência de não dispor de novos grupos químicos dentro dez ou quinze anos. Como o controle biológico para a ferrugem da soja está fora da nossa realidade, vamos ter de nos virar com o que temos de ferramentas. Está na nossa mão viabilizar o sistema produtivo ou perdê-lo. Para a próxima safra, a gente precisa urgentemente de um ajuste fino na questão de posicionamento de produtos. Também é preciso olhar para a planta e, às vezes, a gente só olha para o fungicida A, B ou C e esquece que para ele funcionar tem de considerar o indivíduo planta.” Outra questão a ser considerada, segundo ela, é o ciclo da planta. “A gente está buscando precocidade, em razão da segunda safra, mas no momento em que se encurta o ciclo, o produtor tem menos tempo para reverter qualquer dano. Este ano, a perda de performance das carboxamidas aumentou à medida que se avançava a época de semeadura; por isso temos de buscar um posicionamento mais seguro no plantio. Quando mais tarde, mais vou colocar minha soja em condições de muito inóculo.”

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