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O Brasil gasta muito com sua agropecuária?

Resposta deve levar em conta um conjunto de fatores que caracterizam a agropecuária brasileira


Foto: Nadia Borges

A resposta para esta pergunta, como se pode imaginar, não é simples e deve levar em conta um conjunto de fatores que caracterizam a agropecuária brasileira e sua complexidade, como as condições produtivas, o desempenho de mercado, a segurança alimentar da população, a geração de empregos e oportunidades no meio rural, a geração de divisas internacionais e a relação entre o produtor e o meio ambiente.

Este texto não tem por objetivo esgotar esse grande tema de debate e pesquisa, mas traz alguns indicadores que permitem construir uma ideia preliminar e comparativa a respeito do nível de gasto governamental com a agropecuária brasileira.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulga anualmente indicadores que quantificam o suporte governamental à agropecuária de diversos países, dentre eles o Brasil. Tais indicadores mensuram o valor transferido de consumidores e contribuintes para os produtores, seja de forma individual, seja para o setor agropecuário coletivamente. Dentre as principais modalidades de suporte classificadas pela OCDE, destacam-se as seguintes:

Estimativa de Suporte Total (TSE): refere-se ao valor total anual transferido de contribuintes e consumidores para a agropecuária, bem como os subsídios oferecidos aos consumidores de gêneros agropecuários, descontadas as receitas orçamentárias associadas.

Estimativa de suporte aos produtores (PSE) – refere-se ao valor das transferências brutas para os produtores agrícolas de maneira individual, direcionadas por mecanismos de política agrícola, como o suporte aos preços de comercialização, subsídios ao crédito e seguro rural e demais subvenções ao produtor.

Estimativa de suporte aos serviços gerais da agropecuária (GSSE) – refere-se ao valor das transferências brutas para a agropecuária por meio de instrumentos de política agrícola que beneficiam o setor como um todo (e não o produtor individualmente), como os sistemas agrícolas de pesquisa, desenvolvimento e inovação, sistemas de inspeção e controle sanitário e infraestrutura agrícola.

Vamos aos dados. Considerando-se o período de 2000 a 2020, o Brasil diminuiu, em termos reais, o nível de suporte total à agropecuária (TSE) de US$ 19,34 bilhões para US$ 4,45 bilhões[1] (recuo de 77%). Essa tendência de redução foi seguida por alguns países, como a África do Sul, com queda de 65%, e, em menor intensidade, pela Rússia, Estados Unidos e União Europeia, que apresentaram diminuições do TSE da ordem de 10%, 7% e 1%, respectivamente, no mesmo período. No sentido oposto, a China aumentou consideravelmente seu TSE, saltando de US$ 40,91 bilhões em 2000 para US$ 232,38 bilhões em 2020, crescimento real de 468% no período.

É claro que a quantidade de recursos utilizados para dar suporte à agropecuária depende, entre outros fatores, do tamanho econômico do país e do peso da agropecuária na economia. Entretanto, mesmo se tomado como proporção do PIB, o TSE brasileiro, que representou apenas 0,34% em 2020, se situa expressivamente abaixo de casos como o da China, onde a razão TSE/PIB é de 1,59%, da União Europeia (0,66%) e dos Estados Unidos (0,46%).

Vale ressaltar que, considerando-se os valores médios de 2015 a 2020, o peso da agropecuária chinesa no PIB é 1,6 vez maior que no caso do Brasil, enquanto a razão TSE/PIB na China é 5,2 vezes superior à brasileira. Esse raciocínio vale para outras comparações: enquanto a participação da agropecuária brasileira no PIB é praticamente 5 vezes superior à dos Estados Unidos, a razão TSE/PIB no Brasil é 25% inferior à da norte-americana; se comparado à União Europeia, o peso da agropecuária brasileira no PIB é 20% maior, mas a razão TSE/PIB é 44% menor.

Isso mostra que, quando comparado a esses países, o governo brasileiro gasta pouco com sua agropecuária. Mas é possível ter um diagnóstico um pouco mais detalhado sobre o tema, analisando-se dois dos principais componentes do TSE: o PSE e o GSSE.

No que diz respeito ao suporte direto ao produtor rural (PSE), o Brasil também apresentou redução real expressiva no acumulado das duas últimas décadas, saindo de US$ 13,81 bilhões em 2000 para US$ 1,96 bilhão em 2020, queda de 86% no período (OECD, 2021). Quando tomado em relação à receita bruta da agropecuária (RBA), a relação PSE/RBA, que era de 9,08% em 2000, passou para apenas 1,35% em 2020. A título de comparação, na União Europeia, a relação PSE/RBA foi de 19,33% em 2020 e, nos países membros da OCDE, de 18,07%, enquanto na China, Estados Unidos e Rússia as relações foram de 12,17%, 11,03% e 6,68%, respectivamente.

A redução dessa proteção à produção agrícola brasileira se intensificou a partir de 2011, quando o País atingiu um pico de US$ 21,62 bilhões (6,86% da RBA) e, com exceção de 2016, esse montante tem diminuído ano após ano desde então, seja em termos monetários absolutos, seja em proporção das receitas brutas da agropecuária.

Em termos da composição do PSE – que se divide em: pagamentos vinculados à produção de commodities; vinculados ao uso de insumos agropecuários predeterminados; vinculados aos quantitativos de área, número de animais, receitas e rendas dos estabelecimentos; e em pagamentos não-vinculados à produção –, entre 2000 e 2011, a participação média dos pagamentos vinculados à produção de commodities foi de 49% do PSE, caindo para 23%, em média, entre 2012 e 2020. Isso aumentou a participação dos pagamentos vinculados ao uso de insumos (máquinas, fertilizantes, corretivos, defensivos, rações e medicamentos para animais, dentre outros) para 73% do PSE, em média, entre 2012 e 2020, ainda que o total absoluto de recursos do PSE tenha se reduzido significativamente.

Esses dados mostram um redirecionamento dos instrumentos de política agrícola responsáveis por esta subvenção direta, no sentido de se utilizar os escassos recursos de suporte direto ao produtor para intervir menos no sentido de “o quê produzir” e mais no sentido de “como produzir”.

No caso do suporte vinculado ao uso de insumos, os principais instrumentos de política agrícola são o crédito rural e o seguro rural, que têm sido atrelados a critérios ambientais e práticas agrícolas preestabelecidas[2] OECD (2021). O Brasil possui programas e linhas específicas de crédito associadas à promoção de práticas agrícolas sustentáveis, como o Programa Agricultura de Baixo Carbono (ABC), que destina crédito para a recuperação de pastagens degradadas, agricultura e pecuária orgânica, plantio de florestas, melhoria dos sistemas produtivos e preservação dos recursos naturais. Além disso, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar se destaca como a principal fonte de subvenção à produção agropecuária familiar de pequena escala, representando uma frente com potencial para a redução das desigualdades socioeconômicas no meio rural brasileiro.

Com relação ao seguro rural, quatro programas principais servem de suporte aos agricultores, por meio de subvenção ao prêmio do seguro e compensação aos produtores por perdas na produção devido a desastres naturais: Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR); o Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro); o Proagro-Mais; e o Programa Garantia Safra. Os dois primeiros são destinados a agricultores comerciais e concentram seus recursos na região Centro-Sul do País e na produção de grãos, sobretudo soja. Os dois últimos estão vinculados à agricultura familiar e produtores de pequena escala.

Além desses programas, a OCDE destaca os estímulos à produção de biocombustíveis – etanol e biodiesel – e programas de compra institucional de alimentos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003 com a finalidade de promover o acesso à alimentação e estimular a agricultura familiar (MDS, 2021), e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que desde 2009 destina 30% de seus recursos para a aquisição de produtos da agricultura familiar (FNDE, 2021).

No que diz respeito ao suporte aos serviços gerais da agropecuária (GSSE), novamente o que se vê é uma redução sistemática de recursos, embora em menor proporção que o caso do PSE. Após um crescimento real e sustentado durante o boom das commodities (2003 a 2011), quando saltou de US$ 2,53 bilhões para US$ 6,75 bilhões, o indicador vem apresentando quedas absolutas consecutivas e terminou 2020 no patamar dos US$ 1,75 bilhão. Ainda assim, o GSSE ganhou participação no total de suporte à agricultura brasileira (TSE), mas não por conta de aumentos de recursos e sim por puro efeito estatístico.

Por fim, é preciso olhar para as condições presentes no meio rural brasileiro e refletir a respeito da eficácia desses gastos. De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 2017, apenas 20% dos estabelecimentos agropecuários recebem orientação técnica no Brasil (e apenas 8% recebem orientação técnica de órgãos do governo). A realidade se agrava no Norte e Nordeste, onde os percentuais atingem, respectivamente, 10% e 8%. Na região Sul, por outro lado, 49% dos estabelecimentos recebem orientação técnica, sendo que 15% dos estabelecimentos recebem orientação técnica de órgãos do governo, maior percentual entre as regiões brasileiras.

Com relação à escolaridade, cerca de 15% dos dirigentes de estabelecimentos agropecuários no Brasil nunca frequentaram a escola, percentual que sobe para 23% no Nordeste, demonstrando as disparidades regionais e as carências estruturais que a agropecuária brasileira ainda enfrenta. O acesso à energia elétrica ainda não existe para 16% dos estabelecimentos agropecuários brasileiros (830.785 estabelecimentos), percentual que sobe para 20% no Nordeste e 27% no Norte.

O Brasil possui, ainda, 11,9 milhões de hectares de pastagens plantadas em más condições, o que representa o uso inadequado das áreas agricultáveis no País, sobretudo no atual contexto e debate sobre o agravamento dos efeitos climáticos mundo afora.

Com base na metodologia e nos indicadores da OECD (2021) a respeito do suporte à agropecuária e em  dados do Censo Agropecuário de 2017 sobre as condições estruturais dos estabelecimentos agropecuários no Brasil, é possível afirmar que o Brasil possui níveis relativamente baixos de suporte destinados à agropecuária. Este aspecto, junto ao bom desempenho da agropecuária brasileira no mercado internacional – como são os casos da soja, do açúcar, da laranja, do milho e das carnes (bovina, suína e frango) – reflete a competividade da agropecuária brasileira.

Entretanto, não se pode esquecer que a mesma agropecuária brasileira que lidera rankings de produção, exportação e produtividade é também a agropecuária caracterizada por disparidades estruturais, regionais, produtivas e socioeconômicas, que têm nos instrumentos de política agrícola e social o principal caminho para mitigar suas carências e aumentar o nível de bem-estar social, seja de quem vive no meio rural e depende dele para produzir, seja de quem consome os bens e serviços oriundos do meio rural.

O Brasil, portanto, gasta relativamente pouco com sua agropecuária, seja com relação aos outros importantes players do agronegócio no mercado internacional, seja com relação às carências características de sua agropecuária e das pessoas que a compõem, seja, ainda, com relação ao contexto e aos desafios ambientais que o País tem pela frente. Se mesmo com baixos níveis absolutos e relativos de suporte o Brasil conseguiu tornar uma parcela de seus produtores extremamente competitiva e leva hoje a denominação de “celeiro do mundo”, imagine o potencial brasileiro se as condições basilares de produção e reprodução socioeconômica estivessem acessíveis a cada um de seus produtores rurais. Infelizmente, a restrição de recursos e sua má distribuição têm limitado o papel das políticas públicas, de fornecer oportunidades e mitigar as disparidades econômicas, sociais e produtivas no meio rural. O Brasil gasta pouco e cada vez menos, em termos absolutos e relativos, e, de alguma forma, pode-se dizer que gasta mal, dadas as disparidades presentes no meio rural ao menos desde o processo de modernização da agropecuária brasileira, iniciado em meados do século XX.

 

 

* Por Rodrigo Peixoto da Silva, Pesquisador da área de Macroeconomia do Cepea

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