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Vinicultores da Crimeia se reinventam e tentam ensinar invasores russos a trocar vodka e cerveja pelo vinho

Fervor patriótico russo em relação à Crimeia impulsionou venda de vinhos produzidos na região


Nos tempos soviéticos, os vinicultores da Crimeia não se davam muito ao trabalho de obter qualidade; o que interessava era quantidade.

“Tinham que fazer um montão de vinho barato para suprir a demanda de um país enorme”, explica Oleg Repin, que possui uma vinícola perto do porto desta cidade.

Hoje em dia, porém, Repin faz parte de uma pequena fraternidade de pioneiros que pretende estabelecer um núcleo de propriedades produzindo vinhos finos.

Pavel Shvets, fundador da Uppa Winery e a força motriz da ideia de desenvolver uma denominação de origem em Sebastopol, também é membro.

“Não havia histórico de produção de vinho de qualidade aqui. Estamos tentando criar um sistema novo, uma filosofia diferente de produção.”

E a iniciativa estava indo tão bem quanto a degustação de um Cabernet sedoso – até que o Kremlin resolveu tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, gerando sanções econômicas por parte do Ocidente para isolar a península do Mar Negro.
Cliente único

Isso forçou o setor incipiente a lidar com um cenário totalmente novo e inesperado. Talvez o desafio maior fosse o de perceber que, de repente, o potencial de venda teria que se concentrar em um país só: a Rússia, onde há muito o vinho é visto apenas como uma “birita aguada” e infinitamente inferior às bebidas mais consumidas, ou seja, vodca e cerveja.

“Quando assumi o cargo de sommelier, o pessoal nem sabia o que significava essa palavra. Aí começou, um pouco aqui, ali; a verdade é que, ano após ano, os russos vêm aumentando o consumo de vinho de qualidade”, conta Shvets, que passou quinze anos em Moscou como restaurateur antes de plantar a primeira vinha, em 2008.

Os vitivinicultores estão pensando em longo prazo; sabem que Sebastopol precisa de pelo menos mais uma década para se firmar como região produtora de destaque. E ainda estão fazendo experimentos para saber qual a uva que produzirá o melhor vinho da denominação.

Shvets, por exemplo, plantou doze variedades nos sete hectares de cultivo; até agora, a Pinot Noir é a que produziu o melhor tinto e a Riesling e a Chardonnay, os melhores brancos. “Mas a decisão final deve levar anos”, prevê.

Ele explica que o consumo geral de vinho vem subindo cinco por cento ao ano na Rússia, chegando atualmente a um bilhão de litros/ano. Apesar disso, o país cultiva pouco menos de 64 mil hectares de vinhedos – só em Bordeaux é o dobro disso. Para o consumidor russo, a França e/ou a Itália continuam sendo sinônimo de “vinho bom”.

“O vinho russo não é muito popular porque ninguém sabe nada a respeito dele. Ninguém entende que é possível produzir um bom vinho na Rússia.”
Vinho bolchevique

As vinícolas soviéticas gigantes não ignoraram totalmente a ideia de criar uma bebida característica, mas o fizeram com uma outra opção de personalização: uma cooperativa na periferia de Sebastopol, por exemplo, que acrescentou um toque de fervor bolchevique ao seu vinho espumante, batizando seus vinhedos com o nome de Sophie Perovski, a jovem que foi enforcada pelo assassinato do czar Alexander II.

A família da moça, que era nobre, era dona da propriedade, e os vinhos feitos ali atualmente continuam a estampar no rótulo “Vinícola Perovski”.

As coisas eram tão confusas quanto hoje quando a Crimeia fazia parte de uma Ucrânia independente, após o colapso da União Soviética, em 1991, mas a anexação de 2014 foi um golpe para a qualidade.

A onda de fervor patriótico russo em relação à Crimeia estimulou o consumo de vinho produzido na região. Alguns comerciantes inescrupulosos, porém, percebendo a oportunidade de grandes lucros, passaram a colocar o rótulo “Engarrafado na Crimeia” em toda e qualquer porcaria que importavam.

Assim que a novidade passou (e as horrendas ressacas também), as vendas do vinho crimeu despencaram.

E esse não foi o único problema causado pela anexação.

Repin, 43 anos, produz apenas quinze mil garrafas/ano em seus dois 2 hectares; acabou de adquirir mais seis, e pretende construir um pequeno hotel para estimular o turismo.
Efeito das sanções

Para isso, precisa fazer um financiamento equivalente a US$675 mil; acontece que os grandes bancos russos evitam trabalhar com a Crimeia por medo de sanções; os nacionais, chegam a cobrar uma taxa proibitiva de até 25 por cento de juros.

Shvets, entretanto, conseguiu convencer o governo de Sebastopol de que tem a seu favor o tempo e o “terroir”– e garante que a combinação de solo e clima onde o vinho é produzido se equipara a da Borgonha, com dias quentes e noites frias.

Shvets é um vendedor tão convincente que um empresário que guiava um grupo de agentes de turismo chineses pela propriedade disse, mais tarde, aos amigos: “Você consegue beber o vinho dele com os ouvidos.”

Nascido em Sebastopol, Shvets, 39 anos, conta que uma das primeiras lembranças da infância foi uma visita a Massandra, a antiga vinícola dos czares. Em Moscou, ele se tornou sommelier de um dos restaurantes mais exclusivos da cidade, além de abastecer as adegas de diversos oligarcas russos, conseguindo assim a quantia necessária para comprar 16 hectares na Crimeia.

Sebastopol é um distrito federal especial – e seu governo, desesperado para diversificar a economia e diminuir a dependência da frota russa no Mar Negro, apoia a ideia de Shvets de criar pelo menos 200 vinícolas boutique.

No momento há menos de trinta, e apenas metade dos quinze mil hectares da região adequados para essa cultura está sendo cultivada; assim, as autoridades locais começaram a oferecer subsídios para quem se compromete a plantar uvas.

A propriedade de Shvets, espetacular, fica a 45 minutos de carro do centro de Sebastopol, em uma colina verdejante a quase 460 metros acima do nível do mar. Ganhou o nome de Uppa, nome tártaro para o rio local, e produz 50 mil garrafas/ano do que chama “vinho elegante, fresco e de qualidade”, tantas vezes que parece mais um mantra.

Shvets fala sobre o tempo, no século V a.C., quando as colônias gregas na região que hoje é Sebastopol exportavam vinho para o Mar Negro e toda a área do Mediterrâneo.

A demanda crescente na Rússia garantirá renda suficiente, mas as sanções ameaçam essa meta. Em uma feira de vinho, realizada na Itália há pouco tempo, a polícia fechou o estande de uma das vinícolas crimeias presentes, já que as importações estão proibidas.

“É um problema. E não é nem questão de dinheiro, mas sim de não fazer parte da comunidade produtora mundial”, reconhece Shvets.

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