Água dita o ritmo da agricultura no Amazonas
Em Careiro da Várzea (AM), hortas como esta ficam submersas em virtude das cheias
Numa vila repleta de agricultores, situada no distrito Terra Nova, município do Careiro da Várzea (AM), vivem amazonenses dispostos a enfrentar dificuldades para plantar e colher. São moradores de uma região muito fértil, mas pouco estável, devido à erosão natural dos rios. Apesar da adversidade de conviver com o risco de desmoronamento das terras e em meio aos alagamentos anuais vindos com as cheias, há moradores da Várzea que não trocam a vida agrícola em família por nada.
“Aqui é várzea e alaga. Quando está no melhor da planta e a gente está começando a ganhar um dinheirinho melhor, a água vem e toma. Mas toda nossa família vive aqui e não temos vontade de sair não”, afirma Francisca da Silva, de 62 anos.
Careiro da Várzea é cercado de água por todos os lados. Para chegar ao distrito de Terra Nova, onde mora a família de Francisca, o acesso é difícil, por pontes rudimentares de madeira. Manaus fica a cerca de 22 km por via fluvial, numa viagem de 20 a 30 minutos através da “voadeira” – uma pequena embarcação com motor. No caminho, um dos pontos turísticos mais famosos do Amazonas: o encontro das águas, onde o rio Negro encontra o Solimões.
Desafios das águas
Mas os rios não são apenas deleite para os olhos. Eles determinam o ciclo de produção e as condições de moradia da população. As casas precisam ser construídas a uma altura que não alague com a cheia dos rios; às margens, a vida é imprevisível, devido ao fenômeno da terra-caída, quando as laterais do rio desabam e causam desmoronamentos.
Num município habitado por pessoas que vivem da agricultura ou da pesca, as hortas suspensas são uma estratégia para não perder os cultivos quando o rio sobe. Muitas famílias constroem estruturas de madeira suspensas para plantar, mas, como nem todas têm recursos financeiros para montá-las, aproveitam as próprias árvores. “Temos que fazer canteiro assim, trepado nas árvores, para a gente salvar chicória, cebola, plantar um cheiro”, conta Francisca. “A gente vive e sobrevive disso, então, temos que cultivar para que, quando chegar a alagação, a gente tenha para vender, de alguma forma”.
Edson Rezende, 47 anos, é maranhense, mas mora no Amazonas desde os 19 anos. Aos 30, tornou-se pescador, levando uma vida simples com sua esposa. Vende seus peixes na feira – “com comprador certo” – e aproveita os meses de outubro e novembro, quando a safra é maior. Ele é um dos muitos moradores de Terra Nova que precisaram desmontar suas casas de madeira e reconstruí-las em outro local, mais distante do rio, onde não corram risco de serem levadas pelo fenômeno da terra-caída.
Seus filhos moram e estudam em Manaus. “Eles querem que eu vá embora para lá [Manaus]. Quando veem essa ‘terra-caída’ aí, me perguntam por que não vou embora para lá, e eu respondo: pra fazer o quê? Agora, estou fazendo essa casa aqui por minha causa, porque, pela minha esposa, iríamos embora. Mas eu gosto daqui, tem sossego, calma”.
Agricultura predominantemente familiar
Em muitos quesitos, o estilo de vida dos produtores do Careiro da Várzea reflete os resultados do Censo Agropecuário 2017, divulgados pelo IBGE: a maioria do pessoal ocupado tem laço de parentesco com o produtor, trabalha na agricultura familiar e a direção dos estabelecimentos é predominantemente masculina (entre 79 e 81%). A direção compartilhada pelo casal ocorre em 20% dos estabelecimentos no país, mas no Careiro e no estado do Amazonas essa participação chega a 26%.
Francisca conta que fazer agricultura é um ofício passado de geração em geração, entre as mulheres da família. Ela e seu esposo cultivam alface, cheiro verde, chicória, melancia e outros alimentos para complementar a renda familiar, pois são aposentados. “Eu planto desde quando me entendi por gente, pois nasci e fui criada aqui, e aprendi com minha mãe. Minha filha também vem aprendendo comigo, mas hoje é casada e planta para sua própria família”, afirma.
Aristides Mendes, 71 anos, também divide o trabalho com a esposa. Ele conta que trabalhou a vida toda com agricultura, desde os 12 anos, quando aprendeu a plantar com o seu pai. Hoje, ele ainda planta e colhe, enquanto seus filhos vivem em Manaus, onde também são agricultores. Para ele, fazer agricultura ou pecuária hoje é bem melhor do que no passado, em razão da mecanização do trabalho: “hoje é bem melhor porque nós já temos as máquinas pra revirar o chão”.
Na família de Adamor Carvalho, de 59 anos, apenas uma de suas três filhas é agricultora. “As mulheres casaram, foram estudar, e não quiseram saber de plantar, exceto uma delas que vive aqui do lado e planta com o marido, é minha vizinha”. Já o filho segue o caminho do pai. “Ele aprendeu a plantar desde pequeno quando ia para o roçado comigo, olhava, e foi aprendendo. Hoje me ajuda aqui, sou eu e ele”, conta.
Envelhecimento no campo
Os filhos que não sucedem os pais nos estabelecimentos - seja porque saem de Careiro da Várzea para estudar ou procurar trabalho, seja porque assumiram um estabelecimento agropecuário próprio – contribuem para o que se chama de envelhecimento no campo. É na agricultura familiar que mais se sente o peso dessa mudança no perfil etário do produtor.
No caso de Edson, ele vê com tranquilidade a saída dos filhos para a capital, porque eles podem ter o que não conseguiu: estudo. “Eles foram pra Manaus fazer faculdade, fiz uma casa para eles, eles trabalham lá. O que quero dar para eles é o estudo. Sempre falo para meus filhos que eu quero que eles trabalhem para eles, que eu mais minha esposa tocamos o barco por aqui”, diz o pescador.
Comparando-se os Censo Agropecuários 2017 e 2006, houve redução na participação dos grupos de produtores entre 25 e 35 anos (de 14% para 10%) e aumento entre os produtores de 55 anos ou mais (de 40% para 46,7%). No Amazonas, o envelhecimento é ainda mais evidente: 54% dos produtores têm mais de 45 anos e somente 4,9% dos agricultores possuem menos de 25 anos.
Adamor, prestes a completar 60 anos, fala que já não é tão fácil encarar o trabalho duro da roça, mas, se alimentando bem, pode trabalhar sem problema. “A gente é idoso, né? Menino novo aguenta trabalhar direto, sem almoçar, correr para cá e para lá. A gente não”.
Aos 71 anos, Aristides também não quer parar. “Tenho coragem para trabalhar demais ainda, e boa vontade. Não tenho necessidade de trabalhar assim, tenho um comércio também, mas é aquela mania, eu gosto de plantar, é gostoso o trabalho e foi assim que crescemos na vida”, ressalta. Já Edson, pensando no futuro, não pensa em uma idade para parar. A diferença é que, para ele, é a paixão pela pescaria que o faz seguir em frente: “Eu sou apaixonado por pesca, eu amo pescar. Então, mais do que pelo nosso sustento, eu pesco por prazer, e enquanto eu ainda tiver vontade, vou pescar”.