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Lágrimas por Kiribati


Gilberto R. Cunha

Triste ironia do destino, mas aquela que foi a primeira nação a, literalmente, entrar no século 21, talvez (se nada mudar) também venha a ser a primeira a deixá-lo. Estamos nos referindo à República do Kiribati (Ilhas Gilbert, quando possessão inglesa, que se tornou independente em 1979), um conjunto de 33 ilhas (a maior parte atóis de corais) situado no centro do Oceano Pacífico, que juntamente com Tuvalu, Nauru, Vanuatu, Palau, Tokelau, Ilhas Marshall, Maldivas, Bangladesh, etc. estão entre as possíveis vítimas do aquecimento global, que terão seus territórios (no todo ou em parte) submersos pela elevação do nível médio dos mares. Não foi sem controvérsias que, em 1994, o presidente Teburoro Tito, alegando que Kiribati estando disperso ao redor dos dois lados da linha internacional de mudança de data (a longitude de 180º) possuía em seus domínios duas datas diferentes, com uma defasagem de 23 horas entre elas. Com base nisso, resolveu deslocar, por decreto, a linha internacional de mudança de data para a extremidade leste do seu território (Ilha Caroline, que foi renomeada como Ilha Milênio em 1997). Isso posto, Kiribati tornou-se o país do mundo onde cada novo dia começa primeiro. E o que era justificado por uma razão de praticidade passou a ser considerado por muitos como uma jogada de esperteza, com vistas à corrida para se tornar a primeira nação a entrar no novo milênio. A convenção da linha de mudança de data é de 1884 (decidida em conferência internacional), ficando o controle de coordenação do tempo no mundo a cargo do Real Observatório de Greenwich. E por não haver razões legais para impedir que cada nação não disponha de soberania para escolher qual o sistema horário que quer adotar, a mudança estabelecida em Kiribati foi aceita pelo Observatório de Greenwich e reconhecida pelos cartógrafos, isentando-se as Nações Unidas de intervir no assunto (apesar das apelações dos países vizinhos, como Tonga e Ilhas Chatham, que até então tinham o privilégio que Kiribati tomou para si). O que estava em jogo era a disputa de turistas apressados para chegar antes que todo mundo no terceiro milênio. E a pressa era tanta que nem se esperou o 1º de janeiro de 2001 (as comemorações foram em 1º de janeiro de 2000). A elevação do nível médio dos mares é considerada uma das previsões mais confiáveis (que provavelmente já está em curso, sendo diagnosticada uma elevação de 10 a 20 cm no século 20, com perspectiva que se acelere nas próximas décadas), quando o tema é o aquecimento global. O relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, 2001) projeta uma elevação entre 9 e 88 centímetros, até o ano 2100. E as conseqüências disso são impactos destrutivos nos sistemas costeiros (manguezais, por exemplo), com perda de biodiversidade (desaparecimento de espécies), erosão de paisagens e, no caso de alguns países insulares (com pouca margem para adaptação), até o extremo de configurar populações inteiras na categoria de novos refugiados ecológicos. A elevação do nível médio dos mares pelo aquecimento global se fundamenta na expansão térmica da água e no aumento de volume dos oceanos em função do derretimento de geleiras e das calotas polares (coisas que já estão em curso). Por exemplo, a suposição de derretimento da massa de gelo da Antárdida Ocidental e seu deslizamento para o mar causaria uma elevação de seis metros no nível dos oceanos no mundo todo (elevação de mesma magnitude seria observada caso derretesse o domo de gelo da Groelândia). Isso seria uma catástrofe, com um redesenho do mapa mundial. Inclusive, mais irônico que a submersão de Kiribati, cujo salvamento entrou na agenda do Banco Mundial (com um programa de a adaptação à mudança do clima global da ordem de US$ 6,6 milhões), neste caso, seria o fim de um dos espaços mais caros para o povo americano, símbolo da determinação dos Estados Unidos para que um atentado daquela proporção jamais atinja o país, o Memorial do World Trade Center, em Manhattan, que ficaria embaixo d`água (sendo esta uma das "An Inconvenient Truth", de Al Gore).

Os admiradores da obra de Robert Louis Stevenson (Treasure Island, Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hide e In the South Seas, por exemplo) devem se lembrar que, nesta última (Nos mares do sul), o escritor escocês relata duas passagens por Kiribati (em tempos de Ilhas Gilbert), em Butaritari e Abemama, nos final dos anos 1880. Mais uma razão para Kiribati ser um nome emblemático.

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