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MEPES: 40 anos em Educação do Campo


Marcos Marques de Oliveira

A trajetória da organização que trouxe a Pedagogia da Alternância para o Brasil
 
O Brasil comemorou, no último 28 de abril, seu Dia da Educação. No entanto, uma das mais importantes novidades nessa área foi festejada alguns dias antes, no pequeno município capixaba de Piúma. Ali, mais especificamente no Centro de Formação e Reflexão do Movimento de Educacional Promocional do Espírito Santo (MEPES), quase 160 pessoas reuniram-se para ouvir os pioneiros na implantação da Pedagogia da Alternância no país.

O primeiro a dar seu depoimento foi o Padre Humberto Pietrogrande, que centrou seu discurso no que chamou de “a pré-história” do processo de implantação dessa metodologia de ensino em terras brasileiras.

- O MEPES foi registrado no dia 26 de abril de 1968. Mas ele foi concebido antes. Não nasceu da cabeça do padre, ainda que a educação dos meus pais tenha ajudado nessa semeadura. Afinal, é na família que se forma gente - iniciou o orador, hoje com 78 anos, lembrando o momento em que deixou em Veneto (região do norte da Itália), em setembro de 1961, a casa dos pais para cumprir sua missão religiosa no então desconhecido Brasil.

Sob a benção de sua família, Padre Humberto seguiu viagem. Aportou, em fevereiro de 1962, em Salvador (BA), “terra que aprendi a amar”, recebendo já uma triste notícia: a morte de sua mãe.
 
- Será que eu causei? Foi a minha primeira pergunta. Mas, logo a seguir, trabalhei meu luto resolvendo dar vida à terra que Deus havia me dado. Da Bahia fui para o Rio Grande do Sul, e de lá cheguei ao Espírito Santo, estabelecendo-me, definitivamente, na paróquia do município de Anchieta - lembrou o padre, confessando que, nesse início, ao se dar conta da grave situação sócio-política da região chegou a pensar: “Estou perdendo meu tempo”.

Ditaduras
Naquela época, o Brasil entrava numa fortíssima ditadura civil-militar, com cerceamento dos direitos civis e repressão ostensiva a qualquer pensamento de oposição ao grupo que tomou o poder político em abril de 1964. A ditadura também se dava na ordem do pensamento, na tentativa aguda de se implantar uma só concepção de desenvolvimento social, cultural e econômico, com base na reprodução acrítica dos “modelos” dos países centrais do capitalismo.

No campo, por exemplo, houve o predomínio da chamada “Revolução Verde”, que pressupunha uma só saída para a produção rural: grandes extensões de terra, cultivadas por máquinas e defensivos agrícolas. Particularmente, no Espírito Santo, estava ocorrendo um processo similar ao que se deu nos tempos idos da implantação do capitalismo inglês. Com o cercamento dos campos das antigas colônias agrícolas (especialmente as colônias dos plantadores de café), estimulava-se a ida da população rural para os centros urbanos, onde tal massa deveria ser absorvida pelas indústrias.

Sob esse cenário, padre Humberto logo identificou a necessidade de encontrar uma saída alternativa, especialmente para as colônias de imigrantes italianos que passavam por grandes dificuldades. E foi na sua terra natal que a encontrou. Em dezembro de 1964, durante uma visita à Padova, conheceu a experiência da Escola Família Agrícola, inspiração italiana das Casas Familiares Rurais francesas, que surgiu na década de 30 do século passado sob uma nova concepção educacional voltada aos interesses e demandas específicas dos camponeses – a hoje já bem difundida Pedagogia da Alternância.

- Assim que conheci uma Escola Família Agrícola, pensei: vou levar para Anchieta. Convidei um grupo de agricultores daqui para conhecer a experiência italiana e estudar a possibilidade de se implantar no Espírito Santo. Acreditava que ela poderia atender as necessidades físicas, econômicas e espirituais dos agricultores brasileiros. Lembro, agora, de uma fala do então prefeito de Piúma, que doou as terras para o MEPES, durante a missa de celebração do ato jurídico de sua fundação: “Padre, o MEPES não vai morrer fácil”. Perguntei o porquê e ele respondeu: “Nessa missa estavam presentes dois grandes inimigos políticos da região, que nunca freqüentaram o mesmo espaço. É um milagre, padre, um milagre!”.

Colaboração italiana
Dos sete brasileiros que foram à Padova, um veio a falecer em meio à “aventura”, como, segundo Padre Humberto, alguns críticos chamaram o empreendimento. No entanto, a iniciativa veio a ganhar um reforço de peso. Sensibilizado com aquela comitiva, o então diretor da Escola Família de Padova se ofereceu para ajudar na implantação da Pedagogia da Alternância no Brasil. Foi assim que o agrônomo Mário Zuliani veio parar no Espírito Santo.

- Receber brasileiros na Itália, naquela época, era uma coisa inusitada. Até então, conhecia apenas algumas tentativas de implantação da Escola Família na África, mas sem sucesso - recorda Zuliani, instigado em saber como seria a implantação daquele modelo de Educação do Campo na realidade rural brasileira.

De acordo com o italiano, a perspectiva hegemônica à época era de que a implantação de escolas “técnicas” resolveria os problemas do campo no país. Com uma proposta diferenciada, que aliava à concepção técnica preceitos políticos de organização popular e comunitária, as EFAs, como passaram ser conhecidas, provocou uma maneira diferente de ver a educação. O impacto da Escola Família Agrícola de Olivânia foi imediato e, logo a seguir, duas novas foram inauguradas: a de Alfredo Chaves e Rio Novo do Sul. Na década de 70, inclusive, o norte do Estado começou a ganhar suas primeiras unidades – que hoje chegam a quase 20.

- E o impacto não foi só na educação. O movimento também foi pioneiro na área da saúde. Com os cursos de parteira e a preocupação com a maternidade, tentávamos combater o grande índice de mortalidade infantil que afetava o meio agrícola. Criamos, inclusive, com o grupo de Líderes de Saúde Voluntárias, um original programa de medicina preventiva e curativa, que pode ser considerado o precursor dos atuais programas de saúde da família - resgata Zuliani.

E, ainda segundo ele, foi sob inspiração do MEPES que se deu a expansão da Pedagogia da Alternância no Brasil.

- Lembro do jovem Thierry, que veio estagiar no MEPES para depois levar a experiência para Brota de Macaúbas, na Bahia. Lembro que, ainda em 1982, demos os primeiros passos para a criação da atual União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil (UNEFAB) - afirmou o emocionado Zuliani, passando a palavra a outro importante personagem dessa trajetória institucional, que estava sendo repassada naquela mesa-redonda, bem intitulada: “Resgate histórico da atuação mepiana”.

Faces do MEPES
- Em 1972, o MEPES entrou em minha vida. Era um período tenebroso, especialmente no Norte do Espírito Santo, que possui uma situação sócio-econômica diferente da do Sul, um pouco mais difícil - iniciou dessa forma Cristalino de Jesus, um dos 12 filhos de uma família camponesa moradora de uma pequena comunidade do município de São Mateus, reconhecida como o “último quilombo” do país.

A passagem pela EFA de Jagoré e a participação na Comunidade Eclesial de Base da diocese de São Mateus marcaram profundamente a visão de mundo de Cristalino, que se entusiasmou com a capacidade de união e ajuda mútua do movimento que o acolhia (assim como 5 dos seus 11 irmãos), especialmente pelo engajamento dos que na defesa daquela obra buscavam criar uma nova consciência social entre os jovens agricultores.

- Eu sou um beneficiário dessa obra, que promoveu um grande sentimento de pertencimento. Claro que todos aqui têm sua relevância, afinal o MEPES tem muitas faces. Mas foram os agricultores que se identificaram nessa obra que deram cara ao MEPES - afirmou Cristalino, pontuando todas as fases de sua colaboração para a difusão da Pedagogia da Alternância, que passa pelo processo de Reforma Agrária que aconteceu no Espírito Santo em 1985 (quando as Escolas Famílias foram reconhecidas como a proposta de educação mais adequada aos assentamentos), até sua colaboração para a instalação de três unidades de ensino em Moçambique, dessa vez em trabalho realizado para a UNEFAB.

A importância da atuação do MEPES para a formação de uma nova consciência camponesa em terras capixabas também foi destaque da fala de João Baptista Martins, outro que testemunhou a chegada da Pedagagia da Alternância no Brasil:

- Quem passa pelo MEPES, pensa diferente - afirmou Martins, fazendo questão de ressaltar que a Pedagogia da Alternância implementada e difundida no Brasil, não é uma repetição imediata das experiências européias: “Somos referência porque temos fundamentos baseados em uma realidade diferente. O que temos em comum é uma proposta de educação que busca formar um cidadão, ao mesmo tempo, solidário e autônomo”.

A luta, porém, não se deu sem dor. De acordo com Martins, os desafios foram muitos, já que o movimento incomodava muitos grupos, especialmente os “caciques” políticos representantes da estrutura fundiária vigente. Segundo o agricultor, em suas andanças para ajudar na difusão dos princípios e valores da organização, não foram poucas vezes que chegou a ouvir: “João, você vai pro norte, mas não volta”. Mas, para Martins, tudo valeu à pena.

- Hoje o agricultor é outro, organizado para produzir com dignidade, capaz de fazer escolhas conscientes. E tem representantes em vários lugares. Há deputados que nos dizem com orgulho: “Eu estudei no MEPES!” Inclusive, muitos dos atuais secretários de agricultura da região passaram pelas Escolas Famílias. Ao contrário de muitos, estes têm, portanto, o “pé no chão”.

Desafios
Há, no entanto, segundo o pioneiro, dois desafios que o MEPES deve enfrentar nos seus próximos 40 anos: a manutenção da unidade do movimento e a distorção dos princípios da Pedagogia da Alternância.

- O MEPES sempre foi um movimento pluralista. Podemos discordar, mas nunca nos dividir. E temos que nos preparar para a principal ameaça, que são os interesses diferentes dos que se utilizam a Pedagogia da Alternância. A metodologia é apenas um instrumento, que pode tanto ser usado para o bem como para o mal. Ou seja, a favor ou contra a agricultura familiar, completou Martins.

Para a Irmã Camélia, antiga voluntária do movimento, responsável por sistematizar, naquela manhã, o debate, a prova de que será possível manter a unidade na diversidade que sempre inspirou o MEPES estava ali, na frente de todos. Para começar, ela apontou a prevalência do princípio ecumênico do movimento, representada na própria composição da mesa, dirigida pelo pastor luterano Siegmund Berger. Em complemento, apontou para o fato de 60% do público do evento ser formado por jovens.

- O MEPES, que formou várias gerações, é uma árvore já crescida, com fortes raízes e significativos frutos. Nessa sala, com a presença dos jovens, estamos vivendo o futuro do MEPES. Por isso, acho que terá muito futuro, já que tem um bonito presente e muito passado. É uma estrutura consolidada, só que com grande alma, como muito bem demonstrou a mística que abriu esse encontro, que ao unir no quadro o livro e a enxada, expressou a relevância de um dos princípios fundamentais do MEPES, que é a preocupação obtusa com o homem em sua integralidade. O homem todo e, ao mesmo tempo, todos os homens, assim como o ambiente que o cerca - destacou a religiosa, instigando o público com a seguinte reflexão final:

- Se acreditamos na máxima “eu sou o que sou hoje por causa das escolhas que fiz ontem”, que protesto contra as injustiças vamos continuar a fazer?

Em conversa particular com esse que lhes escreve, Padre Humberto, que hoje continua sua missão religiosa em outro estado de nossa federação (Piauí), confessou estar confiante no futuro do movimento que ajudou a fundar.

- Geralmente, no inverno, costumamos olhar para o campo e ver uma paisagem árida. Na primavera, tudo parece melhor porque olhamos as flores e nos entusiasmamos em plantar as sementes, que são aquecidas no verão e, geralmente, colhidas no outono. Porém, se tivermos um pouco mais de atenção, vamos ver que sob a paisagem árida do inverno persistem as raízes que possibilitam, sempre, o renascer da vida no campo.

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