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Açaí tratado com choque térmico mantém sabor e tem boa aceitação

Tratamento térmico antes de bater os frutos não altera o sabor da bebida, segundo a pesquisa


Foto: Pixabay

Pesquisa da Embrapa Amapá demonstrou que não existem alterações no cheiro, textura e sabor da bebida de açaí (Euterpe oleracea Mart.) cujos frutos passam pelo choque térmico na temperatura de 80°C a 90°C, etapa essencial para inativação do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, que pode estar presente em barbeiros contaminados. Realizado com consumidores do açaí tradicional da Região Norte, o estudo científico desmistifica o temor de que o calor alteraria as propriedades do alimento. Esse preconceito é uma das principais causas da rejeição do produto final por parte da população e de alguns batedores, cujos frutos foram submetidos a tratamento térmico.

Participaram do ensaio sensorial 272 pessoas, entre homens e mulheres, que consomem açaí cotidianamente. A imensa maioria dos entrevistados (95,5%) aprovou o produto tratado termicamente, justificando apreciar as qualidades do que consideram o bom açaí: grosso e com cor, aroma e sabor característicos. Eles também afirmaram que comprariam o produto usado no ensaio, açaí médio preparado em batedeiras após os frutos serem tratados termicamente.

Mergulho quente por dez segundos

O choque térmico nos frutos, ou branqueamento como é popularmente conhecido, elimina vários microrganismos causadores de doenças adquiridas por açaí contaminado, entre eles, o protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas.

 “O batedor de açaí deve mergulhar os frutos higienizados em água aquecida em temperatura de 80 °C a 90 °C durante dez segundos. Em seguida, os frutos devem ser resfriados em outro tanque com água limpa em temperatura ambiente, por dois minutos. Com esse procedimento e as demais etapas das boas práticas, vários agentes causadores de doenças são eliminados”, destaca a pesquisadora da Embrapa Valeria Saldanha Bezerra.

Ela explica que a pesquisa procurou avaliar rumores de que esse tipo de sanitização causaria mudanças nas características originais do açaí, um preconceito que faria o consumidor rejeitar o produto. Por isso, a pesquisa de análise sensorial envolveu os próprios consumidores de açaí tradicional para testar a hipótese. A análise sensorial envolve percepções por meio dos órgãos dos sentidos, no caso dessa pesquisa, foram enfatizados o olfato, o paladar e a visão.

Durante dois dias, pessoas que consomem açaí pelo menos uma vez na semana se tornaram voluntários. Eles degustaram a bebida e, em seguida, preencheram uma ficha de avaliação com perguntas socioeconômicas, impressão geral do produto e a intenção de compra.

“Os consumidores tradicionais da bebida aceitaram o produto processado após choque térmico dos frutos, descrevendo-o com características positivas e expressando a efetiva intenção de compra do produto, contrapondo a alegação de algumas pessoas de que esse tipo de sanitização leva a alterações perceptíveis ao consumidor tradicional de açaí, causando um reflexo negativo na venda do produto”, concluiu a pesquisadora.

95,5% gostaram muito do açaí

O estudo envolveu 272 consumidores de açaí, 71% deles em idade entre 15 e 50 anos, a faixa etária considerada ideal para avaliação sensorial. O teste de aceitação revelou que 95,5% destes consumidores valoraram o açaí com nota 8 ou maior que 8. Na análise, significa que gostaram muito a extremamente da bebida.

Em relação à descrição da bebida açaí, as expressões mais selecionadas pelos consumidores avaliadores foram: sabor de açaí, tipo grosso, cor e cheiro típicos da bebida. Estas são palavras que positivamente identificam as características boas do açaí. “Após a avaliação dos dados de intenção de compra dos consumidores sobre o açaí batido, observamos que 94,9% comprariam aquela bebida. Se a este valor adicionarmos as notas 4 que é provavelmente comprariam, chegaríamos ao universo de 100% dos consumidores que comprariam aquele açaí de frutos processados após choque térmico”, destaca a cientista.

Assim, os pesquisadores concluíram que a etapa de choque térmico nos frutos de açaí, em temperatura de 80 a 90 graus Celsius, não levou a alterações perceptíveis pelo consumidor tradicional da bebida açaí, principalmente em relação ao sabor, cheiro e à coloração que são os principais atributos observados.

A pergunta de partida da análise sensorial junto aos consumidores avaliadores foi “O quanto você gostou dessa amostra de açaí? Para isso foi utilizada uma escala hedônica estruturada de nove pontos, em forma decrescente desde “gostei extremamente” até “desgostei extremamente”. Para descrever a amostra, a equipe da Embrapa utilizou o método CATA (Check-All-That-Apply) onde várias palavras foram colocadas no formulário e o consumidor escolheu a que mais representava a amostra que ele estava provando. Para a variação da intenção de compra, foi utilizada uma escala estruturada de cinco pontos, de forma decrescente, na qual constava desde “certamente iria comprar esse produto” até “certamente não iria comprar este produto”.

Choque térmico

Como resultado do doutorado da pesquisadora Valeria Bezerra, a Embrapa atualizou a recomendação do choque térmico nos frutos de açaí na temperatura de 80 °C a  90 °C. O procedimento do choque térmico é simples e prático. “Você deve fazer uma imersão dos frutos, previamente selecionados e sanitizados, numa água aquecida de 80 a 90 graus Celsius, que é muito quente para frutos de açaí, por isso mesmo devem ser imersos por apenas dez segundos. Se deixar mais tempo, a polpa do fruto pode “cozinhar”, pois é muito fina. Logo depois que retirar os frutos da água quente, fazer imersão em água fria para resfriar o fruto, para não correr o risco de perdas em relação ao pigmento roxo que é a antocianina, um corante antioxidante natural contido na polpa do açaí”, explica a pesquisadora.

Um detalhe fundamental é que a super proteção do choque térmico é uma das etapas, e não um procedimento isolado de garantia. As Boas Práticas de Fabricação de açaí começam desde a colheita, passando pelo transporte, armazenamento e comercialização. “Quando os frutos de açaí são entregues na batedeira, antes mesmo do choque térmico, devem passar pela mesa catadora na qual é feita a retirada de sujidades e insetos, entre eles o barbeiro inteiro ou partes dele, que pode estar contaminado com o protozoário causador da doença de Chagas, e contaminar o açaí batido e o consumidor”, esclarece Bezerra.

Ela ressalta ainda que o fruto de açaí contém apenas 15% a 20% de polpa, geralmente é nesta superfície do fruto que ficam os microrganismos que podem causar doenças, assim como fezes do barbeiro, por exemplo, que podem permanecer nos frutos mesmo após a etapa de catação e lavagens. “Então o tratamento térmico vai eliminar algo que possa ter ficado mesmo após as etapas de catação e higienização do fruto. É o único meio de inativar o protozoário que pode ainda estar presente nos frutos,” frisa.

O açaí e a doença de Chagas

Açaí, para boa parte da população da região Norte, significa refeição diária, com a mesma importância do feijão, por exemplo. Dona Maria Deulinda Ribeiro Nobre, 67, residente em Macapá, vive esse hábito desde a infância. Mas foi a partir de 2008, quando recebeu o diagnostico de doença de Chagas, que ela ficou mais atenta. “Fiquei seis meses hospitalizada, e ficou comprovado que eu e mais 16 pessoas tivemos essa doença devido ao açaí contaminado. Tenho muita precaução, mais consciência. Não tomo de qualquer batedeira. Acho muito importante esse processo do branqueamento (choque térmico). O gosto do açaí não altera nada, fica do mesmo jeito. E fica higiênico e livre da doença de Chagas. Aconselho que todas as pessoas, se puderem tomar açaí de batedeira que faça esse processo (choque térmico) é muito bom”.   

Ela recorda que desde criança é acostumada com a bebida do açaí diariamente à mesa. “Fui criada com açaí, peixe frito, caça, por isso, me acostumei com o açaí todos os dias. Hoje em dia é assim, açaí logo depois do almoço e da janta, acompanhado de farinha. Quando era criança, a gente apanhava e colocava de molho na água quente, amassava na mão mesmo, não tinha esses cuidados de hoje. Melhorou muito e a gente tem que ficar atento”, observa dona Deulinda. 

Diego Felipe Oliveira Assis, 32, também de Macapá, ressalta que a filha de três anos já foi iniciada no hábito alimentar do açaí diariamente. “A gente começou a consumir mais ainda quando nossa filha, desde a fase da introdução de alimentos, começou a tomar açaí. Daí me preocupei em comprar de uma batedeira que tivesse o melhor tratamento possível para que os riscos sejam mínimos a nossa saúde”. Para Assis, o açaí proveniente da batedeira que ele confia chega a ser mais saboroso. “Aqui em casa percebemos que é um açaí mais saboroso e menos perecível, como diz popularmente: ele não azeda no outro dia. A gente almoça açaí todo dia, junto com proteínas e os carboidratos,” conta. 

Fique por dentro

A pesquisa contribui para o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 3 da Organização das Nações Unidas (ONU), que preconiza o direito a uma vida saudável e promoção do bem-estar para todas e todos, em todas as idades.

O trabalho foi uma atividade do projeto Bem Diverso: Integrando Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade às práticas de produção de PFNM e SAF em Paisagens Florestais de Múltiplo Uso e Alto Valor de Conservação - Território do Marajó II, com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Global Environment Facility (GEF).

Os detalhes desse trabalho estão em um Boletim de Pesquisa e Desenvolvimento, disponível na íntegra por meio de download. As autoras da publicação são a pesquisadora Valeria Saldanha Bezerra, engenheira agrônoma da Embrapa Amapá; a estudante do curso de Farmácia da Universidade Federal do Amapá (Unifap) e bolsista do Projeto Bem Diverso, Dominique de Souza Cabral; a engenheira-florestal e técnica local do Projeto Bem Diverso, Danielle Miranda de Souza Rodrigues; e a estudante de Farmácia da Unifap, Allana Hielly Negreiros Lima. Além dessa equipe, também atuaram no ensaio de análise sensorial, a estudante do curso de Ciências Ambientais da Unifap e bolsista Lauane Monteiro Costa; e a mestranda em Biodiversidade Tropical da Unifap Rayane da Mota Rios.

O que dizem os batedores de açaí

Depoimento do casal Robert Anderson Pereira de Araújo e Maria Cecília Ramos Araújo:

“Antes de abrirmos o nosso negócio, fomos em busca de conhecimento técnico e prático. Através de uma indicação fomos até a Embrapa, e aprendemos a maneira correta de trabalhar com o açaí. Desde o início tivemos a consciência de que vidas estão em jogo nesse mercado. De que as Boas Práticas de Fabricação (BPF) são indispensáveis.

Há batedores resistentes quanto a técnica do choque térmico, criando até mesmo sua própria técnica, branqueando com a temperatura abaixo dos 80 ºC, alegando que estragaria o fruto. Mas isso foi desmistificado quando tivemos mais uma oportunidade de provar que o branqueamento traz benefícios à saúde de quem consome o açaí branqueado, e que não há nenhuma ou quase imperceptível alteração de sabor.

Fomos convidados como parceiros para a feira de degustação, processamos o açaí com a técnica e juntos com outros parceiros podemos ouvir de perto o relato de quem pode degustar e sentir o sabor genuíno de nosso açaí”.

Extrativismo sustentável do açaí

Os frutos do açaí servido na degustação da pesquisa de análise sensorial foram colhidos por agroextrativistas na comunidade da Ilha do Meio, município de Afuá (PA).  A localidade faz parte do Estuário Amazônico (ponto de encontro entre o rio e o mar entre os estados do Amapá e Pará), região onde há evidências de ser o centro de origem do açaizeiro espécie Euterpe oleracea (Mart.), abundante em áreas de várzeas ribeirinhas e ?orestas inundadas ao longo dos rios.

Por meio do Projeto Bem Diverso, estes produtores de açaí participam de ações de boas práticas para o extrativismo sustentável do produto e acesso ao mercado. A técnica do projeto, Danielle Rodrigues, ressaltou que o açaí, além de ser indispensável na dieta alimentar da população local, é importante fonte de renda devido à grande procura pelo produto nos centros urbanos. Porém, nos últimos anos, o consumo de açaí contaminado tem sido associado a casos de doenças de Chagas. Por isso, a aplicação de Boas Práticas de colheita, transporte e fabricação de açaí tem sido uma das estratégias para controle do protozoário e, consequentemente, desta doença.

O projeto custeou a participação de agroextrativistas de várias localidades do município ribeirinho de Afuá, em uma rodada de Negócios de Compra e Venda de Frutos de Açaí, realizada no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), em Macapá, na qual negociaram os frutos diretamente com os proprietários de batedeiras de açaí de Macapá e Santana; e no mês seguinte, do fornecimento da matéria prima às cinco batedeiras de açaí que fizeram parte da ação da Embrapa na Feira de Produtos de Campo. “Para tornar essa atividade possível, viabilizamos os frutos e o transporte até a cidade de Macapá. O projeto também oferta cursos de capacitação de manejo de açaí nas áreas ribeirinhas do município de Afuá para ajudar os produtores a aumentar a produtividade das suas áreas de açaizais”, resumiu Danielle Rodrigues.

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