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A diferença entre perigo e risco


Decio Luiz Gazzoni

A diferença entre perigo e risco

Decio Luiz Gazzoni

Ninguém discorda que os agrotóxicos são perigosos. Aliás, toda a substância química é perigosa - incluindo os medicamentos - dependendo da dose. Animais selvagens são perigosos. Automóveis, aviões ou trens são perigosos. O fogo e a água são perigosos. Armas de fogo são perigosas. O sal de cozinha é perigoso. Ou seja, quase tudo é perigoso. Entretanto, a população do mundo cresce continuamente, apesar de cercada de perigos. Alguma coisa não está batendo, certo?

            Perigo é diferente de risco. Um leão faminto é um perigo para um homem? Em termos! Em uma jaula segura de um zoológico, o risco é baixo. E se fosse no centro de São Paulo? Bem, um leão faminto poderia fugir do circo. Sim, mas quantos circos existem? Quantos têm leões? Quantos leões fogem do circo? Como as probabilidades de cada evento são baixas, na prática o risco é insignificante. Para diferenciar perigo de risco, a Ciência dispõe de rígidos protocolos, testados e validados. Eles se baseiam em algoritmos sólidos, que calculam o risco efetivo. Com base no risco, pode-se administrá-lo, minimizá-lo ou eliminá-lo.

A avaliação de risco é um procedimento científico. Consiste em aplicar modelos matemáticos, lastreados em bases de dados, que determinam os efeitos da exposição de um indivíduo, ou de um conjunto deles, aos perigos. Assim, é possível medir o risco de efeitos perniciosos de um medicamento à saúde humana. O gerenciamento do risco determina quais procedimentos devem ser tomados para proteger o paciente. São as instruções que aparecem na bula dos remédios e na receita do médico.

 

Parâmetros toxicológicos

Os órgãos oficiais do governo são responsáveis por estabelecer o risco de uma substância, lastreado em informações científicas, que pode ser reavaliado com base em novas informações ou na alteração do método de análise ou de cálculo. As reavaliações sempre são mais severas e restritas do que a situação anterior.

O parâmetro toxicológico mais difundido é a Dose Letal 50 ( DL50 ). Ela significa “a dose de uma substância química que levou a óbito 50% das cobaias em testes de laboratório”. Assim, a nicotina é considerada altamente tóxica (DL50 = 50mg/kg), bem como a cafeína (192mg/kg). Menos tóxicos são e o paracetamol (3.000mg/kg) e a deltametrina (4.000mg/kg), um inseticida usado para controle de piolhos em seres humanos.

Outro parâmetro é a Ingestão Diária Aceitável (IDA), conceituada como “a quantidade de uma substância química que pode ser ingerida diariamente por um indivíduo, durante toda a sua vida, sem risco apreciável à sua saúde, à luz dos conhecimentos disponíveis na época da avaliação”. Isto significa que não são esperados efeitos adversos, pela exposição continuada à IDA, mesmo que isso ocorra durante toda a vida de um indivíduo.

Em rigorosos e repetidos testes de laboratório, doses crescentes da substância são administradas a cobaias. A maior dose que não ocasionou alterações metabólicas nos organismos em teste é dividida por 100. Assim, a IDA representa apenas 1% da dose que não causou qualquer problema de saúde em cobaias. Porém, é importante lembrar que a dose que não causou qualquer problema normalmente equivale a 1-10% da dose imediatamente superior, que ocasionou alguma alteração em alguma das cobaias. Logo, a IDA representa 0,1-0,01% da dose que poderia, eventualmente, ocasionar algum problema à saúde. Dito de outra maneira, para existir a probabilidade de eventuais danos à saúde, a dose deveria ser 100 a 1.000 vezes maior do que a IDA.

A preocupação com os riscos não se esgotou, é necessário garantir que o cidadão nunca vá ser exposto a essa dose (IDA). Para tanto existe o Limite Máximo de Resíduos (LMR). Trata-se do “valor máximo de resíduo de uma substância admitido legalmente em um alimento, considerando a aplicação adequada de uma substância química (seguindo todas as Boas Práticas Agronômicas), desde sua produção até o consumo”.

Obrigatoriamente, o LMR leva em consideração a IDA. Dessa forma, todo o alimento que contenha resíduos inferiores ao LMR não oferece qualquer risco à saúde humana, à luz dos conhecimentos atuais, mesmo se ingerida diariamente, durante toda a vida. O objetivo desses conceitos (DL50, IDA e LMR) é assegurar a proteção dos consumidores de alimentos em relação a qualquer risco toxicológico.

 

E na prática?

Consideremos o controle de uma praga da batata. Suponha uma aplicação do inseticida deltametrina, efetuada em conformidade com a Lei, com DL50 oral de 5.000 mg/kg de peso corpóreo, IDA de 0,01mg/kg de peso corpóreo e LMR de 0,01mg/kg de batata. Suponhamos também o pior caso possível: que toda batata sempre tenha o máximo de resíduo permitido. A ingestão diária de uma pessoa que pese 80kg, com garantia de não haver qualquer risco à sua saúde (IDA), será de 0,8mg/dia do inseticida (0,01mg/kg x 80kg). Como cada quilo de batata tem 0,01mg de resíduo, pode-se ingerir 80kg de batata por dia (0,8mg que podem ser ingeridos ÷ 0,01mg/kg de batata) sem que haja qualquer problema de saúde devida à presença de resíduos. Em contrapartida, não é possível assegurar que não haja risco à saúde pela ingestão diária de 80kg de batata, mesmo sem resíduos!

Para que seja atingida a DL50, seria necessário consumir os mesmos 80kg de batata todos os dias, durante 1,369 anos, quando haveria, teoricamente, 50% de probabilidade de óbito ocasionado por intoxicação pelo inseticida. Agora, se o consumo fosse o factível, de apenas 200 g de batata/dia, então seriam 583,019 anos! Não apenas é impossível consumir 80kg/dia de batata, como o inseticida inicia a degradação logo após a ingestão. Destarte, o organismo nunca acumularia a quantidade suficiente para intoxicar o indivíduo, mesmo que ele vivesse os 583 mil anos, demonstrando a sobejo que o risco de intoxicação pelo resíduo desse agrotóxico está absolutamente controlado.

 

Percepção do risco

Ao contrário do risco –um cálculo científico e preciso – a percepção do risco é totalmente subjetiva, de uma pessoa isolada, ou de um conjunto delas, baseada em avaliações parciais, sem fundamentação científica, normalmente fundada no desconhecimento e no alarmismo, comportamento descrito na psicologia de populações. Por exemplo, valendo-se de uma percepção de risco sem base factual, um insano qualquer pode infundir uma comoção incontrolável em uma determinada comunidade, veiculando a informação de que perpetrará um ataque de enormes proporções, mesmo estando incapacitado de fazê-lo. Um exemplo clássico de percepção de risco errônea é trocar uma viagem de avião por automóvel, que não possui qualquer fundamento científico, posto que as estatísticas demonstram que os aviões representam o meio de transporte mais seguro.

Também existe a percepção diferencial do risco, baseada em desconhecimento, vieses e visões pessoais em função de diferentes papéis desempenhados na sociedade. Com respeito aos agrotóxicos temos duas percepções antípodas: a de alguns agricultores, que desprezam o risco e não tomam as medidas necessárias para se proteger. Isso os torna suscetíveis a acidentes na manipulação e na aplicação de agrotóxicos. E o seu oposto, que é a percepção transmitida à população leiga, mormente urbana, de que o risco é elevadíssimo e que alimentos produzidos com o uso de agrotóxicos estão sempre envenenados e que, inexoravelmente, causarão problemas de saúde a quem deles se alimenta.

O mundo seria um lugar muito melhor para se viver se tanto agricultores quanto consumidores utilizassem conceitos científicos de risco para suas decisões, em vez de percepções de risco sem qualquer respaldo da Ciência.

 

O autor é Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja.

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