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A legislação portuária brasileira não elege um modelo de gestão


Reginaldo Minaré

             Com base na experiência acumulada no âmbito internacional, pode-se relacionar os seguintes modelos de gestão portuária existentes na atualidade:
 
- "Operative Port": Neste modelo a operação e prestação de serviços portuários estão a cargo da Autoridade Portuária (AP) que depende do Estado direta ou indiretamente. Tanto a gestão diária, como o planejamento da atividade presente e futura do porto estão completamente nas mãos do setor público. É o modelo do porto de Singapura e de diversos portos da América.
 
- "Tool Port": Neste modelo, a AP provê a infra-estrutura, a superestrutura e as instalações, entretanto os serviços são desenvolvidos por empresas privadas. É o modelo adotado por alguns portos espanhóis e franceses.
 
- "Landlord Port" ou portos concessionados: A AP proporciona a infra-estrutura básica e a iniciativa privada, em regime de concessão, participa com a construção, financiamento e exploração das superestruturas e instalações básicas. Como infra-estrutura básica entende-se aquela que está na categoria de bens ou serviços públicos, necessárias para o correto desenvolvimento da atividade marítima com mínima garantia de segurança e êxito. Como exemplos, podemos citar o porto de Rotterdam, Amberes, Le Havre, Hamburgo, Valência ou Barcelona. Normalmente os terminais são equipados pela própria empresa concessionária e a infra-estrutura básica permanece sob a responsabilidade do setor público.
 
- "Private Ports" ou privatização integral: Neste caso a transferência da propriedade do setor público ao privado é completa e irreversível, tanto no que diz respeito à gestão e prestação de serviços como em matéria de financiamento dos investimentos pertinentes. É o caso do porto de Hong-Kong e a política sobre propriedade dos portos no Reino Unido, que avança em direção à completa privatização, como no caso do porto de Bristol, que está sob o comando da iniciativa privada.
 
- Por último, está o modelo de divisão das atividades portuárias, que supõe a criação de uma companhia de capital público e privado que realiza a gestão e exploração do porto. È o caso das companhias portuárias da Nova Zelândia.
 
Evidente que a participação privada nos serviços portuários por si só não significa uma melhor gestão e eficiência dos portos. Todavia, é inquestionável a relevância dos portos no cenário comercial doméstico e internacional, onde a disponibilidade de portos bem equipados e administrados, em quantidade suficiente para atender a movimentação crescente de mercadorias, representa um fator diferencial. Assim, proporcionar o aproveitamento máximo da capacidade de investimento dos setores público e privado na construção e administração de portos é o caminho que os Estados bem administrados estão trilhando. Privilegiar um modelo ou adotar apenas um é cair na ingenuidade de acreditar que apenas aquele modelo seja eficiente, seguro e funcional.
 
No Livro Verde, de 10 de dezembro de 1997, sobre os portos e as infra-estruturas marítimas, a União Européia afirma que no passado os portos eram considerados como entidades prestadoras de serviços de interesse econômico geral, oferecidos pelo setor público e financiados pelo contribuinte. Que hoje os portos são considerados instituições comerciais que devem recuperar a totalidade de seus custos através dos usuários, que são quem se beneficiam deles diretamente. Concluindo que a indústria portuária se apresenta como uma indústria em transição.
 
No Brasil, tanto a Lei nº 8.630/1993 (Lei dos Portos) quanto a Lei nº 10.233/2001, que dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviários e cria a Antaq, não estabelecem restrições aos modelos existentes. As leis mencionadas prevêem e incentivam a livre competição.
 
Entretanto, o Chefe do Poder Executivo, cerceando a plena aplicação da Lei dos Portos e agravando o cenário de insegurança jurídica para o investimento privado no setor portuário, publicou o Decreto nº 6.620, de 29 de outubro de 2008, que dispõe sobre políticas e diretrizes para o desenvolvimento e o fomento do setor de portos e terminais portuários, e disciplina a concessão de portos, o arrendamento e a autorização de instalações portuárias marítimas.
 
Com a publicação do mencionado decreto, o Governo atua no sentido de privilegiar o modelo Landlord Port com o estabelecimento de restrições ao modelo Private Ports.
 
Especificamente sobre a instalação de terminal portuário de uso privativo misto, para movimentação de carga própria e de terceiros, o Decreto aprofundou a ilegalidade e a inconstitucionalidade já existentes na Resolução nº 517, de 18 de outubro de 2005, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq. Esta Resolução, que estabelece norma para outorga de autorização para a construção, exploração e implantação de terminal de uso privativo, exige, ao arrepio da Lei dos Portos, que para a outorga de autorização o interessado precisa comprovar que as cargas próprias que serão movimentadas no terminal justifiquem, por si só, sua implantação.
 
Sobre a Resolução nº 517/2005 da Antaq, a Procuradoria Federal da Agência, órgão da Advocacia-Geral da União, em parecer proferido no dia 28 de junho de 2007, concluiu ser ilegal a restrição à autorização imposta com a exigência relacionada à quantidade ou proporcionalidade de cargas próprias e de terceiros a serem movimentadas. A procuradoria recomendou à Antaq que promovesse a regularização da Resolução nº 517 às leis 8.630/1993 e 10.233/2001 e aos princípios basilares que norteiam a Lei de Modernização dos Portos.
 
A Resolução nº 517 da Antaq, ao restringir um direito assegurado por lei, promove uma inovação jurídica ilegal quando comparada aos textos das leis 8.630 e 10.233, e inconstitucional quando analisada à luz do princípio constitucional da legalidade.
 
Para viabilizar a votação e aprovação do projeto de lei de conversão da Medida Provisória que prorrogou os incentivos do REPORTO, o Senador Romero Jucá apresentou documento da Antaq onde o Superintendente de Portos assumiu o compromisso de modificar a Resolução 517. Conforme o acordo firmado na Tribuna do Senado, a Antaq manteria na resolução apenas o que é exigido pela Lei dos Portos, ou seja, retiraria do ordenamento jurídico a restrição relacionada à exigência de movimentação de carga própria que por si só justifique a implantação de um terminal de uso privativo misto.
 
Porém, o Presidente da República, com a publicação do Decreto nº 6.620, não só desconsiderou o acordo firmado com os Senadores, mas, também, aprofundou a ilegalidade e a inconstitucionalidade já manifesta na Resolução da Antaq.
 
De acordo com o Decreto publicado, as instalações portuárias de uso privativo destinam-se à realização das seguintes atividades portuárias: I - movimentação de carga própria, em terminal portuário de uso exclusivo; e II - movimentação preponderante de carga própria e, em caráter subsidiário e eventual, de terceiros, em terminal portuário de uso misto.
 
Ao conceituar Carga de Terceiros, o citado Decreto estabelece que: "Carga de Terceiros é  aquela compatível com as características técnicas da infra-estrutura e da superestrutura do terminal autorizado, tendo as mesmas características de armazenamento e movimentação, e a mesma naturezada carga própria autorizada que justificou técnica e economicamente o pedido de instalação do terminal privativo, e cuja operação seja eventual e subsidiária".
 
Já a Lei dos Portos assegura ao interessado o direito de construir, reformar, ampliar, melhorar, e explorar instalação portuária de uso privativo misto para movimentação de carga própria e de terceiros, sem estabelecer qualquer limitação ou proporcionalidade entre as cargas. Temos, portanto, uma Lei garantidora e um Decreto cerceador.
 
Com a simples leitura comparada da Lei dos Portos e do Decreto nº 6.620, pode-se verificar que um direito assegurado por lei foi totalmente desconsiderado por um decreto, instrumento que deve, ao regulamentar uma lei, garantir o pleno exercício do direito nela assegurado. Neste caso, ocorreu total inversão da hierarquia das normas. Publicou-se um Decreto ilegal e inconstitucional que representa um retrocesso na modernização dos portos, um desestímulo para a iniciativa privada, um prêmio àqueles que conseguiram cartelizar o setor e um aprofundamento do apagão portuário que já não é previsão para o futuro e sim uma realidade.
 
Efetivamente, com as restrições estabelecidas pelo Decreto, podemos contar nos dedos das mãos o número de empresas que dispõem de carga própria que justifique a implantação de um terminal portuário de uso privativo misto. No caso específico da movimentação de contêineres, a situação fica ainda mais dramática, visto que os dois dedos de um pé de camelo seriam suficientes, e com sobra, para contar o número de empresas em condições de atender a exigência posta pelo Decreto. Para exemplificar a dificuldade imposta, basta observar que mesmo se toda a produção de café no Brasil pertencesse a uma única empresa, a exportação do produto não seria suficiente para justificar a implantação de um terminal.
 
Reginaldo Minaré
Advogado e Mestre em Direito
 

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