CI

A SAGA DE UMA RAÇA


Paulo Lot Calixto Lemos

Convivemos hoje com leilões e feiras de gado de raça de alta genética, animais cujos preços são tidos, muitas vezes, como exorbitantes. Alta pressão de seleção genética, inseminação artificial, transferência de embriões e, mais recentemente a clonagem de animais. Enfim, alta tecnologia e marketing evaporando por todos os poros...

Em termos tecnológicos, podemos dizer que nunca foi assim, porem em termos de marketing, preços, romantismo e paixão, nada se compara a “FEBRE do GIR”, que nosso país viveu nas idas décadas de 30, 40 e 50. Portanto gostaríamos de contar uma historia cujas passagens e fatos, envolvem gente nossa, da nossa região, e relata a saga de uma linhagem da raça gir, que se inicia com a vinda para o Brasil de um touro chamdo “Gaiolão”.

A Viagem

Estamos em 1931, ocasião do retorno do senhor Ravisio Lemos e sua esposa dona Mariana, da Índia, pais origem de todas as raças zebuínas. Após boas compras e uma feliz estadia naquele país retornam no navio, em cujos porões foram acomodadas dezenas de exemplares da raça gir, dentre estes varias matrizes prenhes e alguns tourinhos.

Como não poderia deixar de ser, uma viagem longa e com uma carga como aquela exigiu cuidados especiais e muitos preparativos, como um bom estoque de alimentos e de água. Assim sendo, zarparam do porto de Bombaim com a capacidade de carga praticamente no limite.

Numa noite, depois de muitos dias em alto mar, depararam com uma terrível tormenta. Ondas gigantescas ameaçavam a embarcação. O “corre-corre” e a gritaria eram medonhos. Em sua cabine dona Mariana rezava. Nos porões Sr. Ravizio tentava acalmar os animais. Porem a tempestade não cedia... Até que num determinado momento o capitão do navio convocou toda tripulação e falou:

- Senhores, é imprescindível que esvaziemos a embarcação ou é certo que iremos a pique. Todos os animais, seus alimentos e sua água devem ser atirados ao mar imediatamente. São eles ou seremos nós...

Diante disso, senhor Ravizio concluiu que tudo estava perdido. Não teve outra alternativa a não ser concordar.

Vendo toda aquela movimentação, dona Mariana correu aos porões, e para sua alegria verificou que uma bela novilha que havia criado um lindo bezerrinho poucas horas antes, ainda estava lá. Não pensou duas vezes, falou com o marido e correram até o capitão. Ela disse:

- Capitão, como bom cristão, e tenho certeza, como devotado pai de família, o senhor não pode permitir tal maldade, atirar a mãe e seu filhinho recém nascido para uma morte horrível como esta... Afinal, que diferença eles poderiam fazer quanto ao peso do navio?

Aquela argumentação desarmou o rígido capitão. Assim a novilha e seu filho batizado como Gaiolão chegaram sãos e salvos ao porto de Santos no inicio do ano de 1932.

O jeitinho brasileiro

Os anos se passaram, a “aura” desta historia e suas qualidades raciais – para os padrões da época – envolveram o touro Gaiolão. Mas foi a partir de 1936, após ser adquirido pelo senhor Nilo Jacintho Lemos, profundo conhecedor da raça gir, e pelo seu cunhado, Dr. Julio Batista da Costa, casado com dona Honorina lemos, advogado por profissão e fazendeiro por vocação, que passou a ser considerado um dos melhores raçadores Gir de seu tempo. Uma cobertura sua passou a valer dezenas de contos de réis, e seu valor era talvez incalculável.

Em 1938, ano do acontecimento da grande exposição nacional da raça gir, concentrou todos os grandes “Zebuzeiros” do país no Rio de Janeiro, então capital do Brasil. A movimentação era intensa, o disse me disse e as apostas corriam soltas... Chegou o grande dia, dentre todos os baluartes, ia sair naquele dia o Grande Campeão da Raça Gir, fruto do primeiro julgamento realmente “oficial” da raça.

Finalmente, após todas preliminares e protocolos, o touro Gaiolão foi proclamado o grande campeão da raça gir de todos os tempos...

A algazarra era ensurdecedora, gritos e mais gritos de vivas, foguetório para todo lado. Gaiolão já estava sendo preparado para o grande desfile em carro aberto quando um dos juizes veio ao microfone comunicar que o julgamento estava cancelado por ordem judicial:

- Infelizmente, temos aqui uma ordem judicial cancelando o campeonato. Como se trata de uma feira estritamente nacional, o julgamento foi considerado ilegal, pois o touro Gaiolão não nasceu no Brasil!

Aquilo foi como um balde de água fria na cabeça de todos... O que fazer agora? A revolta começava a tomar corpo junto aos partidários do touro Gaiolão, quando um de seus proprietários, Dr. Julio Costa, pessoa ativa e de muita iniciativa, “incorporou” instantaneamente seu lado advogado e tomou para si a resolução do problema. Localizou o juiz que determinara o cancelamento e datilografou ali mesmo um mandato de segurança alegando que Gaiolão era sim brasileiro! Pois apesar de haver nascido no mar, já se encontrava em águas territoriais brasileiras e em navio de bandeira brasileira! Portanto em território nacional... Diante desta argumentação o juiz se viu obrigado acatar o mandato e validar o julgamento.

Afinal quem poderia afirmar o contrario??

A galinha de ovos de ouro

Estamos agora no ano de 1942. O genearca Gaiolão não mais existia, porem deixou como descendentes 8 touros e 12 fêmeas. Destacando entre eles, os touros Guilherme II, Tamoyo e Romano, alem da vaca Manchinha, prole esta, que na ocasião ainda pertencia ao Doutor Julio Costa, que não era mais sócio de seu cunhado, Nilo Jacintho Lemos. Por serem filhos de Gailolão, a cotação de sua descendência continuava em alta, portanto o assedio para compra-la ainda era enorme, mas Dr. Julio como bom comerciante que era, preferia sempre no lugar de vende-la, vender a sua produção, “manter a galinha dos ovos de ouro”, ele dizia. Quando digo vender a produção, significa comercializar a prole antes mesmo desta nascer. Era chamado vender a “barrigada” da vacada, ou seja, vender antecipadamente os bezerros que iriam nascer no próximo ano.

Naquele ano, a “barrigada” estava vendida aos senhores Bruno Silveira, abastado zebuzeiro de Passos/MG, e Nenê Costa, de Barretos/SP. Apenas para ilustração, cada bezerro por nascer fora vendido a $8,00 contos de Réis, enquanto que um boi gordo valia na época bem menos de $1,00 conto de Réis.

A visão de dona Honorina

A estação de nascimentos já havia iniciado há alguns meses quando a exposição estadual de Barretos estava acontecendo. Como sempre a festa estava animada, muitos negócios, muita prosa, muita cerveja. Num desses dias, estavam reunidos num restaurante do recinto, o doutor Julio, os compradores da “barrigada”, Bruno Silveira e Nenê Costa, e mais uma meia dúzia de zebuzeiros, quando o garçom veio à mesa procurar pelo Dr. Julio Costa, pois que havia uma chamada de sua esposa, dona Honorina Lemos, o aguardando ao telefone. A primeira reação de todos foi de surpresa e apreensão, pois ligações interurbanas naquela época ainda eram difíceis e demoradas, à base de telefonista e fone de manivela...

Dr. Julinho, como era chamado, correu ao telefone. Realmente era dona Honorina:

- Julinho! Está tudo bem, não se preocupe. Estou ligando para lhe avisar que a vaca “Manchinha” criou. Um machinho que é uma maravilha, filho “Guilherme II”. Portando, neto de pai e mãe do Gaiolão.

- E daí mulher! Ele respondeu.

- Quero lhe dizer que você PRECISA comprar este bezerro. Ele é extraordinário!

- Mas Honorina, ele está vendido por $8,00 contos de réis...

- Pois é... O Bruno e o Nenê não podem vê-lo de maneira alguma, se ele for visto você vai ficar sem ele...

- Honorina... $8,00 por um bezerrinho é muito dinheiro...

- Julinho, você não está entendendo. Você pode pagar $100,00 contos pelo bichinho!

Dr. Julio se despediu da esposa, se recompôs e voltou à mesa. Todos estavam lá esperando, com um misto de curiosidade e apreensão no olhar indagador... Julinho foi logo falando:

- Está tudo bem pessoal, coisa de mulher... Ela deveria era de ter chamado “direto” o Bruno ou o Nenê no telefone... Uma tal de Manchinha criou um bezerrinho... Parece que ela se encantou com o bichinho, e quer que eu o compre de volta pelos mesmos $8,00 que vocês pagaram... Acho que a Honorina tá ficando velha... Mas, o que eu posso fazer? Mesmo sabendo que estou fazendo um péssimo negocio vou ter que pedir a vocês dois que me cedam o danado...

- Chega de papo furado Julinho! Disse o esperto Bruno Silveira. E eu não conheço a Honorina? Ela entende muito mais de zebu que você! Se a Honorina se deu ao trabalho de ligar aqui... Uma hora dessas... É porque o filho dessa tal de Manchinha deve ser extraordinário!!! Olhe, eu não dou, não cedo e não vendo esse bezerro por dinheiro nenhum! E mais, vamos arranjar um aeroplano que eu quero é conhecer logo o fulaninho, ao vivo e a cores!

“Xiiiii... Melou”, pensou o Dr.Julinho. Após alguns contatos arranjaram o tal aeroplano para leva-los à Franca. “Montaram” os três no Teco-teco, apearam no aeroportinho de Franca e foram logo para fazenda.

Nenê foi o primeiro a exclamar quando viu o bichinho:

- Esse bezerro é uma coisa de doido! Dessa vez quase que você nos pega, heim Julinho?!

- É fora de série! – Disse Bruno – Vamos leva-lo conosco de volta pra Barretos. Vou criar eu mesmo esse bichinho, na mamadeira e no pão de ló! Um animal como esse só nasce de 100 em 100 anos!

Triunfo em Barretos

No dia seguinte logo cedo, pegaram o bezerro que já havia sido batizado por dona Horonina com o nome de Triunfo, e retornaram para Barretos.

À tarde estava lá a mesma turma do dia anterior, no mesmo restaurante, agora com o bezerro Triunfo no centro da mesa, sendo analisado e admirado por todos os “entendidos” da época...

“Eu dou $50,00 contos pelo bicho!”, dizia um... “Eu pago $100,00!” Dizia outro... Bruno e Nenê mal tinham tempo de “enjeitar” uma proposta que chegava outra. E os elogios às qualidades de Triunfo não paravam de aumentar...

Num determinado momento chega à mesa o Sr. Brasiliano Barbosa, respeitado boiadeiro da noroeste de São Paulo. Após alguns minutos escutando e analisando o bezerro ele disse:

- Bruno e Nenê, este bezerro é meu. Não existe “entretanto nem considerando...” Acabo de abater 1.000 bois gordos no frigorífico Anglo, aqui em Barretos. Tenho um crédito com os ingleses de $623,00 contos de réis. De $23,00 eu preciso, mas até $600,00 contos, vocês podem preencher o cheque com o valor que quiserem. Falou isso, assinou uma folha, e jogou o talão de cheques em cima da mesa.

Silencio absoluto...Todos estavam boquiabertos, afinal era ainda um recém nascido! Ninguém ousava tomar qualquer atitude até que um “sapo de plantão” pegou o talão e começou a preencher o cheque, no valor de $600,00 contos de réis...

Assim o bezerro Triunfo, futuro grande reprodutor da raça Gir, neto de Gaiolão tanto pelo lado materno como paterno, foi vendido pela primeira vez.

Ficou para sempre conhecido como o touro mais caro do mundo.

Vale quanto pesa

Dois anos depois... Triunfo é agora tourinho famoso e muito bem cotado, pronto para iniciar sua vida reprodutiva e a colheita dos primeiros frutos de seu investimento.

Estamos em plena segunda guerra, e mais importante, a exposição nacional de Uberaba corria a todo vapor. Políticos de todos os calibres e de todas tendências fanfarrovam junto a grandes pecuaristas e zebuzeiros pelo recinto do parque Fernando Costa. Todos à espera do digníssimo Presidente da Republica, excelentíssimo senhor Getulio Vargas, para ouvir o seu esperado pronunciamento e assistir a abertura oficial da Expo-zebu 1944.

Getulio chega, com toda sua comitiva de praxe e seu inseparável sorriso nos lábios. Do palanque oficial discursa a respeito da tão malfadada guerra, fala da importância da agropecuária para sanear a fome no mundo, especialmente naqueles tempos sombrios de guerra... Terminado seu discurso, deu abertura oficial aos trabalhos da Expozebu. Quando então, lhe foi apresentado o grande campeão da raça Gir do ano anterior, seu proprietário indagou-lhe se saberia dizer qual era o seu valor. Getulio coçou a garganta, deu um tapa no traseiro do animal e respondeu em alto e bom som:

- VALE QUANTO PESA.

A partir desta pequena frase, iniciou-se a controvertida derrocada da raça Gir e suas lastimáveis conseqüências. A “quebradeira” foi geral, a “Chiadeira”, idem. Porem, aqueles que estavam com o capital totalmente investido na raça, não tiveram salvação.

O senhor Brasiliano Barbosa foi um dos muitos que estavam nesta situação. Seu capital estava praticamente todo investido em novilhas, matrizes e touros da raça Gir... E, um destes era o tourinho Triunfo. Assim, sabendo da origem e da historia daquele animal, em 1945 entrou em contato com o doutor Julio Costa, oferecendo o tourinho que sua esposa tanto havia desejado:

- Doutor Julio. O Triunfo está à venda, sei que você e dona Honorina reconhecem o valor deste animal, portanto o senhor é o primeiro que procuro. Paguei por ele $600,00 contos de réis há três anos atrás e, por $599,00 meu sogro fica com ele. Faz isso porque é rico, mas não reconhece o real valor deste grande raçador. Por este motivo que estou lhe oferecendo e insistindo para que fique com ele. Assim, saberei que Triunfo ficará em boas mãos.

A alma do comerciante falou mais alto que o juízo do advogado. Num relance Dr. Julinho visualizou a grande oportunidade que batia à sua porta. Conhecia como poucos a “paixão” que esta obstinada raça provocava no coração de centenas, talvez milhares de pequenos, médios e grandes pecuaristas. Sabia que, apesar da derrocada provocada por Getulio Vargas, a raça Gir ainda era única, a matriz por excelência para qualquer tipo de cruzamento ou melhoramento genético que se desejasse obter, que com um trabalho de “marketing” adequado, Triunfo poderia ainda se pagar dezenas de vezes. Assim prontamente respondeu:

- Brasiliano, o senhor tocou meu coração “Girista”. Há três anos atrás Triunfo poderia ter sido meu, hoje faço questão que ele volte para sua antiga morada pelos mesmos $600,00 contos que ele se foi...

Assim, o agora grande Raçador Triunfo, neto de Gailolão e filho Manchinha e Guilherme II, foi vendido pela segunda e ultima vez.

Na Franca do Imperador

A noticia de tal compra correu mundo... Não havia uma só roda em que se falasse de outra coisa. Os inflamados Giristas se sentiam como que vingados, respaldados... O marketing de Triunfo se fazia por suas próprias pernas. Sua propaganda corria solta no “boca a boca”. A façanha do negocio, com todas suas particularidades, foi noticiada insistentemente pelo “Repórter-Esso”. Tudo isso “orquestrado” pelo espírito empresarial do Dr. Julinho.

Foi despachado um “mazaropi” para a cidade de Paulo de Faria buscar o touro Triunfo, numa época que boi andar de caminhão era mais difícil que gente andar de avião. Agora era preciso preparar a recepção para a chegada de Triunfo.

Doutor Julinho e sua inseparável dona Honorina listavam, articulavam e comandavam sem cessar. A festança prometia... Teria banda musical da policia militar para recepcionar o tourinho, teria missa com bispo e tudo, políticos, deputados e senadores, os pecuaristas de maior expressão nacional, todos os médios e pequenos fazendeiros da alta mogiana, do triangulo e do sul de Minas Gerais, e convidados em geral. Enfim seria uma festa para 4.500 pessoas, regada a muito chope Antarctica e carne de 18 novilhas gordas, que aconteceria na fazenda Santa Gema em Franca/SP.

Assim, exatamente o que era esperado aconteceu. A festa foi um sucesso total, que ao seu termino já haviam sido comercializadas, só em “coberturas”, quase duas vezes o valor pago por Triunfo...

O touro Triunfo deu ainda muitas alegrias ao casal, Julio e Honorina. Até morrer em 1955, aos 12 anos de idade, fulminado por um raio juntamente com sua mãe Manchinha e mais uma dezena de matrizes.

Acidente este, também noticiado pelo Repórter-Esso: “A pecuária nacional está de luto, morreu ontem, fulminado por um raio durante uma tempestade ocorrida na fazenda Santa Gema, em Franca, o famoso touro Triunfo e Manchinha, sua mãe...”.

Hoje, as cabeças de Gaiolão, de sua filha Manchinha e de seu neto Triunfo se encontram embalsamadas, expostas em um cômodo todo especial da casa de dona Honorina Lemos, na cidade de Franca/SP.

Minha tia Honorina, completa este ano 89 anos de vida...

“Se o Gir não tivesse melhorado o gado crioulo nacional, entre as décadas de 30 e 50, como seria possível as superespecializadas raças européias tirar proveito dos mais diversos cruzamentos?”.

“Sem o Gir não haveria o brilhantismo que vemos hoje na moderna pecuária e seus cruzamentos...”.

Paulo Lot Calixto Lemos

Assine a nossa newsletter e receba nossas notícias e informações direto no seu email

Usamos cookies para armazenar informações sobre como você usa o site para tornar sua experiência personalizada. Leia os nossos Termos de Uso e a Privacidade.