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A RECEITA DO SÔ QUIM


Paulo Lot Calixto Lemos

Ele era um culto e sistemático alfaiate, seu nome: Joaquim Bento Henriques, chamado por todos nós, da família, de sô Quim.

Sô Quim veio ainda jovem de Alfenas para Passos. Isto se deu após a morte de seu pai e em função do casamento de sua irmã Maria, minha querida bisavó, a quem apelidei desde a infância de vovó Quim, com o passense e também sistemático Toniquinho Stockler. Junto com o sô Quim veio também sua alfaiataria, que ficou instalada no cômodo de baixo do sobrado do Toniquinho Stockler. A casa dele era logo ali no inicio da rua Barão de Passos, quase esquina com a cel. João de Barros. Após a viuvez precoce da Vó Quim, os dois irmãos passaram a viver sós por um longo tempo.

Alem de sistemático, sô Quim era também um vicentino convicto, fazia contribuições materiais e acompanhava a maioria dos enterros promovidos pela ordem. Contam que certa vez morreu uma mulher da vida oriunda de um local de péssima fama, e como não aparecia ninguém para acompanhar o enterro ele não pensou duas vezes. Correu até a rua Formosa, na gafieira do Beneditão, um negro alto, forte e exímio dançarino e lhe pediu para que parasse o baile e fizesse com que todos acompanhassem o enterro da infeliz. Prontamente Beneditão convocou sua galera e enterraram ao som de surdos e cuícas a tal dama da noite. Logo após, voltaram e o baile continuou a todo vapor, como se nada tivesse acontecido...

Sô Quim atendia com parcimônia e atenção toda sua freguesia, quando estava trabalhando se dedicava de corpo e alma à sua arte, porém seus horários tinham que ser respeitados e cumpridos a risca. Tinha hora de se levantar, hora de caminhar, de trabalhar, de almoçar e de jantar, hora de se banhar e de se deitar... Até hora de namorar ele tinha! Sim, sô Quim nunca se casou, mas seu namoro com dona Mariinha Silveira fez até bodas de ouro! Toda noite, das 7:00 às 9:00, eles se sentavam na salinha de visitas e de mãos dadas ouviam musicas e o “repórteresso” da Voz do Brasil. Impressionante como combinavam, como se respeitavam, como demonstravam carinho um pelo outro, falavam baixinho e bastava um olhar para que se entendessem. Envelheceram namorando... Por mais de 70 anos a rotina era uma só, á noitinha sô Quim partia bem trajado, de terno e gravata e com guarda–chuvas na mão para a casa da sua Mariinha, onde ouviam radio ou, mais recentemente assistiam novelas na televisão. Quando Mariinha perdeu sua mãe a rotina se inverteu, agora era ela quem vinha toda noite até a casa do sô Quim, pois não ficava bem ele ir até a casa dela, moça solteira vivendo sozinha...

Ele por sua vez, nunca morou só. Era a vó Quim quem cuidava da casa e fazia sua comida especial, feita em banha de porco e com pouquíssimo sal. Arroz bem soltinho, feijão cozido no dia, postas carne de vaca ou de porco recém-cozidas ou guardadas na gordura, abobrinha batida, moranga amassada, chuchu em cubinhos. Tudo isso porque sô Quim sofria de um mal crônico nos intestinos. Depois da morte da vó Quim quem se mudou pra lá e passou a fazer com toda paciência e sabedoria as vezes de dona da casa foi sua sobrinha Conceição, e depois que ela se foi, chegou a vez da tia Dodora, sua sobrinha-neta, que cuidou dele até a sua morte.

Assim os anos foram se passando, e ai de quem indagasse a razão para que ele não se casasse com a Mariinha... Sô Quim respondia curto e grosso, com sua voz firme e carrancuda:

- Isso não é da conta do seu rosário!

Até que um dia sô Quim ficou só, sua Mariinha partiu com bem mais de 80 anos de idade...

Com sua disciplina de sempre, sô Quim continuou cumprindo a risca seus horários. E apesar da dor causada pela perda de Mariinha e de seu aspecto franzino, sô Quim viveu ainda por vários anos. Por isso que certa vez um amigo da família, aparentemente uma fortaleza em pessoa, que vivia de forma totalmente oposta a dele, beberrão, guloso, farrista e brincalhão, veio em tom de galhofa perguntar-lhe qual seria sua receita para viver tantos anos assim...

- Já que perguntou, vou lhe responder. – disse sô Quim.

- Faça da moderação o seu lema de vida... Levante-se todos os dias às 6:00 horas da manhã. Tome um café reforçado, com coalhada, pão, mel e alguma fruta. Saia de casa para uma boa caminhada, e vá para o trabalho com alegria e disposição.

Pigarreou e continuou:

- Almoce sem exageros às 11:00 horas da manhã, uma refeição rica em fibras, proteínas, carboidratos, vitaminas e sais minerais, ou seja, nada mais que o nosso corriqueiro arroz, feijão, carne, legumes e verduras. De sobremesa uma poção de doce de leite ou uma fatia de queijo com goiabada. Tire uma pestana por no máximo meia hora e volte para o serviço. Uma fruta no vão do dia pode ser bom... Tome um bom banho e às 6:30 da tarde faça um jantar leve. Um cozido, um caldo ou uma sopa, sempre acompanhados de pão e uma taça de vinho do Porto, e antes de dormir, às 10:00 horas da noite, tome um bom copo de leite morno ou uma xícara de chá de erva cidreira.

E após uma breve pausa, voltou a dizer:

- Ah! Ia me esquecendo do mais importante! Tudo isso tem muita valia, mas antes, arranje urgente alguma doencinha crônica, viu?

Sô Quim morreu aos 96 anos. “Enterrou” esse amigo fortão e muitos outros conhecidos fortões de sua época...

Paulo Lot Calixto Lemos

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