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ESQUECIDOS NA LEMBRAÇCA


Paulo Lot Calixto Lemos

Até uns 30 ou 40 anos atrás, a maioria das fazendas bem montadas tinha o seu “bobo”. Explicando: o “bobo” ou a “boba” era aquela pessoa com algum tipo de deficiência ou retardo mental, que fazia o serviço de terrereiro da casa sede. Que ajudava na matança e limpeza do capado, no feitio da manteiga, da pamonha ou da goiabada, que tratava das galinhas e outros bichos, que cuidava da horta de verduras e do pomar. O “bobo” era figura fundamental para o bom andamento do serviço, era o braço direito da dona da casa. O bom “bobo” era muito valorizado, quanto mais trabalhador, respeitoso e obediente, mais era requisitado. Concordo que em termos salariais ele era um explorado, mas de qualquer maneira quase sempre o “bobo” se sentia necessário e estimado, portanto vivia feliz. Alias, nunca conheci um deles triste!

Hoje em dia não se vê mais “bobo” nas fazendas. O que será que foi feito deles? Pergunto-me sempre: Será que não nascem mais pessoas com algum tipo de deficiência mental? Não acredito...

Outro dia um velho fazendeiro me deu uma explicação que talvez tenha razão de ser. Ele disse:

- Ora, você tá muito enganado! Hoje, mais do nunca toda fazenda tem seu bobo!

- Mas como! – respondi – visito centenas de fazendas todo ano e não vejo mais bobo!

- Então é porque as fazendas que você tá indo não tem dono! Pois hoje o “bobo” é o próprio fazendeiro, uai!

É... Tive que concordar, realmente, hoje em dia, só bobo mesmo pra continuar tentando ganhar a vida com fazenda. Pelo menos em regiões como a nossa, de fazendas pequenas, nas quais a “reforma agrária hereditária” já chegou há algum tempo, desacompanhada de uma política agrícola confiável e consistente por parte do governo... Naqueles tempos ser fazendeiro era sinônimo de “status”. Época em que fazendeiro quando chegava em concessionária de automóvel era paparicado. Hoje quando chegam, os vendedores fingem que não os vêem e cochicham uns com outros: - Hi! Chegou um “cravo”, vá você ver o que aquele muxiba quer... E etc, etc.

Bem, mas voltando ao assunto do “bobo” no sentido real da palavra. Acredito sim, que os “bobos” daqueles tempos eram mais felizes... Porém, pergunto-me: O que aconteceu com eles e mais ainda, o que aconteceu com os bobos da cidade? Lembro-me que quando ainda era menino, além dos “bobos” das fazendas, existiam dezenas de “bobos” andando pelas ruas da cidade.

Quem da minha geração não se lembra da “Maria-Tomate”, braba que nem o cão? Do “João-Ratão”, que tinha o pescoço da largura dos ombros? Do “Tião-Curió”, cara de malandro que só... Da “Marta Rocha”, toda alegre e colorida, enfeitada até o ultimo fio de cabelo? Do “Dá-um-Pedaço”, que por ser banguela mastigava sem parar, parecendo sempre estar comendo alguma coisa. Do “Chupa-Ovo”, entender o que ele falava era um sacrifício... Da dona “Maria-Macaca”, que andava com algodão enfiado nos ouvidos para não escutar nossas provocações? Do “Biscoitão”? Esse ainda pode ser visto por ai, especialmente em velórios, pois não tem defunto importante que ele não ajuda a enterrar. Para ele, segurar a alça e ajudar a carregar o caixão é o máximo... Dizem que num certo enterro, muito concorrido, quando ele conseguia segurar a alça do caixão, vinha alguém e o arredava tomando seu lugar... Até que depois da décima tentativa ele apelou falando alto: - Aqui ó! Ocêis enfia esse defunto no c....! E saiu pisando duro, muxoxando e dando tabefes na própria cabeça. E de muitos outros, como do “Cacho-de-Coco” sempre armado com seu estilingue. Do “Preocupado” e sua cabeça cheia de chumaços de cabelo enroladinho. Do “Bia”, o alto-falante vivo da antiga rodoviária, e por ultimo do saudoso “Lalau-Boiadeiro”.

Não sei se é porque não sou mais menino, e por isso perdi os “olhos” de detectar “bobo” ou se realmente eles não existem mais. Se existem e não estão mais nas ruas ou nas fazendas, com certeza devem estar nos manicômios, nos asilos ou hospitais... Mas minha duvida continua, será que eles ganharam ou perderam com isso? Não posso dizer que viver nas ruas ou fazendas seja o mais correto, e que esse modo de vida não careça de modificações, mas conhecendo a historia e a estrutura da maioria desses asilos e manicômios, e imaginando a vida deles nessas instituições, totalmente isolados do mundo, sem contato familiar, sem o mínimo de auto-estima ou vontade própria, se sentindo apenas inválidos... Posso acreditar sem sombra de duvida: Os “Bobos” perderam. Infelizmente, o sistema lhes tirou o ultimo alento que lhes restava – sua já restrita liberdade.

Paulo Lot Calixto Lemos

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