
Claro está a Constituição. O artigo 68, das Disposições Transitórias, afirma: "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Preciso. Ninguém poderá discordar.
Na comemoração dos 300 anos de Zumbi, o imperativo constitucional oferecia ao então Presidente Fernando Henrique Cardoso o direito de favorecer os quilombolas do Pará. Ao Incra coube emitir o título da terra. Justiça era feita, pela primeira vez, aos povos perseguidos da raça negra. O Brasil, como se vê, começou antes do governo Lula.
Facilitou o trabalho do governo, na época, a firme atuação dos antropólogos da Comissão Pró-Índio, de São Paulo, junto à associação criada pelos próprios remanescentes em Oriximiná. Não havia dúvidas. Naquela distante beirada de rio, centenas de famílias viviam e produziam espalhadas no meio do mato, fugidas sabe-se lá quando do mando escravista.
Durante todo esse tempo, escondidos da civilização, cultivaram suas origens. Jamais abandonaram sua cultura, guardando o segredo dos costumes históricos. Para eles legislaram os constituintes de 1988, assegurando-lhes o direito das terras que, afinal, sempre ocuparam. O conceito fundamental da boa reforma agrária diz: "a terra para quem nela trabalha".
Na década de 90, sabia-se existir inúmeras comunidades remanescentes de quilombos no país. Talvez umas 500. Ao governo caberia identificá-las devidamente, delimitar seus perímetros, dando seqüência ao processo de regularização fundiária. Não era complicado.
Mas a ousadia do governo levantou temores na oligarquia. Ocorre que várias comunidades quilombolas haviam sido invadidas durante a expansão da fronteira agrícola. O progresso no campo aproximava mundos distantes. Sobreveio o litígio agrário. Não sendo pacífica a posse da terra, o artigo 68 da Constituição exigia regulamentação.
Era processual o maior problema. Donos de terra em áreas supostamente quilombola exigiam indenização. Não apenas das benfeitorias, mas da propriedade rural. Ora, se a Constituição estabelece, peremptoriamente, que pertence aos remanescentes de quilombos as terras que ocupam, como poderia o governo pagar para os brancos, invasores, para de lá saírem?
O imbróglio jurídico amarrou o assunto. Mesmo assim, dezenas de conhecidas comunidades quilombolas obtiveram, com ajuda da Fundação Palmares, seu titilo fundiário. Tudo limpo, sem problemas.
Passou o tempo. Lula venceu as eleições e, logo em 2003, quis modificar a matéria. Baixou o Decreto 4887/03, dando poderio total ao Incra para dirimir eventual conflito sobre a propriedade da terra ocupada pelos quilombolas. Facilitou aos tomadores de decisão. Até ai, tudo bem.
A grande insensatez do governo petista, porém, se expressa no artigo 2°, do referido Decreto. Nele se estabelece que a caracterização dos remanescentes de quilombos será atestada mediante "auto-definição" da própria comunidade. Na roça, isso se chama "porteira aberta".
Virou uma correria. Militantes políticos saíram a campo para mobilizar quietas comunidades negras, vendendo-lhes o paraíso. Começou a aparecer quilombola pra tudo que é lado. Recente mapa da UnB identifica 2 228 comunidades quilombolas no país, espalhadas por todas as regiões. O primeiro cadastro, de 2000, apontava 840 localidades. Há quem afirme que já são 3 524 comunidades esperando a possível redenção. Outros apontam 5 mil.
A maioria das, pretensas, comunidades quilombolas está concentrada na faixa litorânea. É curioso. Nada a ver com os remanescentes de Oriximiná, embrenhados no interior longínquo. Nem com os Kalungas goianos, fugidos para veredas distantes do cerrado.
A excessiva politização favorecida pelo governo de plantão roubou, do conceito de quilombo, o dado fundamental, qual seja, a ocupação da terra. Passou a significar, conforme apontou Denis Rosenfeld, uma genérica comunidade de cor, sentimentos e afinidades. Sob a definição do governo petista, quilombola significa todo descendente de escravos, sem vínculo territorial. Um absurdo.
O Brasil precisava, sim, corrigir a injustiça social cometida contra os fugidios da escravidão. Significava resolver um problema histórico. Porém, certa ideologia tupiniquim, aquela que mistura revanchismo com esquerdismo, ao invés de ajudar, criou um novo, e maior, problema para a sociedade.
A área reivindicada pelas comunidades quilombolas ultrapassa 25 milhões de hectares, maior que o território paulista. A pretensão não guarda qualquer relação com a posse, ou exploração, da terra. Basta se declarar remanescente de quilombo, e apontar onde seus ancestrais viveram. O assunto descamba para a vendeta.
Haverá, por certo, frustração de expectativas. O proselitismo político inconseqüente, que vende solução milagrosa para afirmar sua prepotência neo-revolucionária, deixará seqüelas. Rancores serão criados. Novos ódios surgirão. Aumentará, ao invés de diminuir, a questão racial.
O perigo, mais uma vez, é a conta sobrar para os agricultores sérios do país. Logo aparece algum boboca dizendo que a culpa é do agronegócio. Definitivamente, quem criou o problema mora na cidade.