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COMITIVA BOIADEIRA


Paulo Lot Calixto Lemos

“Antigamente nem em sonhos exista, tantas pontes sobre os rios, nem asfalto nas estradas... Cada jamanta que eu vejo carregada transportando uma boiada, me aperta o coração...”.

Sinfonia de sons multicoloridos valsando sobre patas. Nenhuma outra frase define melhor a colorida imagem de uma boiada sendo conduzida estrada afora. Um mar de barbelas e cupins balançando de um lado pro outro num malabarismo sem fim, rabos abanando, incontáveis mugidos, latidos de cachorros, estalos de chicotes... O som ofegante e abafado da respiração dos animais, o barulho surdo das patas que avançam... Tudo isto, orquestrado pelo choro apaixonado dos berrantes, e regido pelos gritos preguiçosos – Eeeh! Boooi!!! ...

Nessa sinfonia dos sertões o prato de todos os dias é o gostoso arroz carreteiro e o feijão tropeiro. A matula também é indispensável. A paçoca de carne seca, o queijo e a rapadura são mais que um simples alimento, é um costume, é a “boca de pito”, para matar o tempo e tapear o estômago enquanto a bóia não chega. O vira-lata não é um simples cachorro que desentoca o bicho ou levanta a arribada, é membro da comitiva com direitos iguais aos dos peões. Nos finais de tarde, nos pontos de pouso, discretas talagadas de cachaça limpam as goelas castigadas pela poeira e pelos gritos de “êeeh boi...”.

A solidão no arreio, do nascer ao poente é a companheira do peão. Com os primeiros raios do sol ele arreia seu cavalo, engole o quebra-torto preparado pelo “mestre-cuca”, à base de ovos, toucinho e cebola. Depois da última garfada, um gole de café forte e quente aquece a alma e fortalece os músculos. Pito aceso, está na hora de recomeçar a marcha e, se não houver contratempo, seguramente outros 30 quilômetros ficarão para trás.

A boiada na estrada não tem pressa. Avança pachorrenta. Quando em estrada de transito, antes e depois dela, peões sinalizam aos motoristas alertando para a presença do gado na pista. Essa prática é norma imposta pela legislação de trânsito, mas poderia se restringir ao aviso àqueles que transitam em sentido oposto aos animais. Quanto aos que seguem na mesma direção não há necessidade por uma simples razão: a quantidade de estrume que cai sobre o asfalto ou a terra é mais que suficiente para deixar o motorista consciente que à sua frente existe um mar de patas em movimento.

Se alguns bois estouram e deixam a estrada arrombando a cerca de algum retiro, misturando-se ao gado dali, o comissário da boiada tem algumas alternativas para recuperá-los. Se necessário corta os arames em algum ponto da cerca, e acompanhado por alguns peões leva o “sinuelo”, que no jargão da pecuária é um boi velho, manso, que acompanha outros animais para acalmá-los, e tenta arrebanhá-los. Se a coisa complica o comissário lança mão de expedientes mais duros: o laço e o cachorro. Se a invernada é limpa, peões os laçam e os arrastam de volta à boiada. Se a capoeira impede ou dificulta a laçada, o vira-lata entra em ação: desentoca o bicho do mato, o agarra firme pelas ventas e o subjuga. Quando isso acontece o peão reconhece seu valor e o recompensa com um pedaço de carne-de-sol ou um afago silencioso.

O comissário não perde um boi ou bezerro sequer, sob pena de pagá-lo ao fazendeiro que o contratou. Mas, se um animal é ofendido por cobra e morre, se perde a vida por alguma doença ou acidente, a regra determina que se corte o pedaço do couro com a marca do ferro em brasa do dono da boiada, como prova do que aconteceu. E se a rês fica fraca ou doente e não suporta a viagem, ela deve ser deixada para trás em alguma fazenda do trajeto. Em tais situações, o comissário está isento, não têm culpa no cartório.

Para o peão, preservar os animais que conduz é ponto de honra. Todos eles possuem plena noção da importância de seu trabalho.

Peão de boiadeiro ganha em média um salário e meio por mês, livre da bóia e montando cavalo do comissário. A relação deles é mantida pelo documento mais antigo que se tem notícia, e que hoje, nas cidades, perdeu o valor: o “fio de barba”, a palavra de homem.

Paulo Lot Calixto Lemos

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