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Entre metáforas e sonhos


Gilberto R. Cunha

É fato que o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), apesar da fama de ter sido o conversador mais espirituoso do seu tempo, costumava dizer que tinha o hábito de participar de palestras científicas somente para renovar o seu estoque de metáforas. Talvez isso ajude a um melhor entendimento da vida e da obra de um homem que, vivendo entre metáforas e sonhos, destacou-se como um dos grandes nomes do romantismo britânico, influenciando, no século 19, toda uma geração de novos escritores (De Quincey, Byron e Shelley, por exemplo).

Coleridge era o filho caçula do segundo casamento do pastor protestante John Coleridge que, segundo Jorge Luis Borges (em Introducción a la literatura inglesa, escrito com a colaboração de Maria Esther Vázquez, em 1965), costumava deleitar os fiéis de sua igreja com longas passagens de sermões na língua mais próxima do Espírito Santo: “em hebreu”. Nasceu em Ottery St. Mary, no condado de Devon, Inglaterra, em 21 de outubro de 1772. Após a morte do pai, em 1781, foi estudar em Londres, em instituições religiosas, destacando-se como leitor voraz e, não raro, melhor aluno de suas turmas. Ingressou na Universidade de Cambridge em 1791, onde acabaria endividando-se, pelo consumo exagerado de álcool e de ópio (tornou-se viciado), além do envolvimento com mulheres. Desesperado, em 1793 entrou, com nome falso, para o Exército, onde, sem a mínima vocação para as armas (não sabia sequer montar um cavalo), por interferência do irmão, Capitão James Coleridge, deu baixa quatro meses depois. Retornou para Cambridge, porém não por muito tempo, pois, em 1794, deixaria de vez a universidade sem obter qualquer titulação acadêmica. Iniciou um relacionamento com intelectuais simpatizantes da Revolução Francesa, como Roberto Southey, que marcaria a sua vida pessoal e profissional em definitivo. Neste mesmo ano, da pareceria, nasceu a peça The Fall of Robespierre (A queda de Robespierre), na qual Coleridge escreveu o primeiro ato e Southey os dois outros.

Em outubro de 1795, Coleridge casou-se com Sara Fricker (em 1799, se apaixonaria por outra Sara: Sara Hutchinson). Com a primeira Sara teve quatro filhos (Hartley, Berkeley, Derwent e Sara) e um casamento infeliz, que acabaria de vez por volta de 1806, pelo seu estilo de vida e, principalmente, em decorrência do vício por ópio.

Ainda em 1795, iniciou amizade com os irmãos William e Dorothy Wordsworth. Com William, especialmente, formou uma das parcerias mais criativas da literatura inglesa. Publicaram, em 1798, o Lyrical Ballads (Baladas Líricas), inovando a linguagem poética da época. O livro abre com um poema clássico de Coleridge, The rime of the ancient mariner (A balada do antigo marinheiro), e encerra com Tintern Abbey, de Wordsworth.

Em setembro de 1798, Coleridge e os irmãos Wordsworth partiram para a Alemanha. Durante a viagem morreu sua filha Berkeley (ainda criança, por reação a uma vacina da época). Permaneceria nove meses na Alemanha, assistindo conferências (Filosofia, na Universidade de Göttingen), escrevendo artigos e estudando a língua daquele país (tornou-se professor e tradutor de alemão). Desencantado com a ditadura de Napoleão, perdeu sua admiração pela Revolução Francesa. Aproximou-se do idealismo metafísico alemão, interessando-se especialmente pelos trabalhos de Immanuel Kant, que passou a divulgar quando retornou à Inglaterra.

Sua obra poética é vasta, porém destacam-se três poemas: A balada do antigo marinheiro, Christabel (escrito em várias etapas) e Kubla Khan, cada um deles com suas particularidades, que os tornam singulares. Kubla Khan teve uma elaboração no mínimo curiosa, aceitando-se a versão de Coleridge. Segundo consta, em um dia do verão de 1797 (há quem entende que foi em 1798), ele leu um livro de viagens e teve um sonho no qual escutava uma voz que repetia um poema, ouvia uma estranha música e visualizava a construção de um palácio. Sabe-se lá por que motivos, ele supôs que se tratava do palácio erguido por Kublai Khan, o imperador mongol decantado por Marco Polo. Coleridge lembrava-se de todos os mais de 300 versos, e começou imediatamente a escrevê-los. Todavia, foi interrompido por uma visita inesperada, e quando retornou não mais conseguiu se lembrar do poema, restando o fragmento de pouco mais de 50 versos que havia anotado, e que se constituem, hoje, em uma das páginas imortais da literatura universal.

O “sonho” de Coleridge é analisado com detalhes por Jorge Luis Borges em Otras Inquisiciones (publicado originalmente em 1952). Explicações existem, desde as racionais até as sobrenaturais, começando pelo fato de que Kublai Khan, que viveu no século 13, ergueu um palácio conforme uma visão que teve em um sonho. Cinco séculos depois, o poeta inglês, que viveu na transição dos séculos 18 e 19, e que não sabia nada sobre isso, sonha um poema sobre o palácio. Mais ainda: do palácio de Kublai Khan descobriu-se, no século 17, que só restaram ruínas e, do poema sonhado por Coleridge, ficou apenas o fragmento famoso dos 50 versos As hipóteses que transcendem a racionalidade (nem sempre as mais aceitas) são as mais encantadoras. Por exemplo, na visão de Borges, cabe supor que a alma do imperador, uma vez destruído o seu palácio, penetrou na alma de Coleridge para que esse o reconstruísse com palavras, que são mais duradouras que os mármores e metais.

Para os que não acreditam no sobrenatural, a história do sonho de Coleridge tem outra explicação. Primeiro, nada mais que coincidências. Segundo, o poeta soube, de alguma forma, que o imperador havia sonhado o palácio e criou a ficção em torno dos seus versos (embora nada indica que Coleridge pudesse ter lido algo sobre isso antes de 1816, quando publicou Kubla Khan). Terceiro, Coleridge foi feliz em criar uma ficção que, com o tempo, ganhou respaldo histórico (no Compêndio de Histórias de Rashid ed-Din, que data do século 14, em relato do vizir de Ghazan, que descendia de Kublai, consta que Kublai Khan construiu um palácio conforme um plano que havia visto em um sonho. Uma versão ocidental dessa obra apareceria em Paris, 20 anos depois da publicação de Kubla Khan).

Na sua obra em prosa mais conhecida, Biographia literária, há quem encontre, inconsciente (por influência do vício em ópio) ou não, indícios de plágio de obras de Fichte e de Schelling, por exemplo.

Samuel Taylor Coleridge foi poeta, escritor, conferencista, professor, tradutor e criador de jornais e revistas (quase todos tiveram vida efêmera). Depois de 1810, com o casamento desfeito e cada vez mais dependente de ópio, Coleridge encontrou abrigo numa espécie de “irmandade” dirigida pelo dr. James Gillman, onde passou a viver como “hóspede”. Saía pouco de casa, mas continuou produzindo e publicando obras. O homem que viveu entre metáforas e sonhos, acabaria morrendo em 25 de julho de 1834 (com 61 anos), sendo enterrado no jardim da casa do dr. Gillman, em Highgate, nos subúrbios de Londres. Depois da sua morte, Henry Nelson Coleridge (seu sobrinho) e a esposa Sara (filha de Coleridge) organizaram a obra dispersa do poeta, publicando e republicando vários livros.

Sobre Coleridge, o crítico Stopford Brooke resumiu com precisão: “Tudo o que merece ficar de Coleridge poderia reunir-se em vinte páginas e essas vinte páginas deveriam ser encadernadas em ouro!”

(Gilberto R. Cunha é membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

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