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Fetch


Gilberto R. Cunha

Uma das heranças culturais deixadas pelos celtas aos escoceses foi o mito do Fetch. Trata da duplicidade de visão do mundo que assola os homens momentos antes da morte. Possivelmente, segundo Jorge Luis Borges, este tema serviu de inspiração para Stevenson escrever o clássico romance Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, que, em português, ficou conhecido pelo sugestivo título de "O médico e o monstro". Os títulos, original e tradução, são ilusórios, pois o final é, seguramente, muito mais assombroso do que, à primeira vista, se poderia imaginar, revelando uma aguda percepção da alma humana. Robert Louis Balfour Stevenson chegou a ser visto como um mero escritor de livros infantis. Foi necessário meio século, depois da sua morte, para ser reconhecido como um autor original, cujos romances e ensaios estavam além do seu tempo. Hoje, faz parte daquele grupo de intelectuais em que autor e obra se destacam com a mesma intensidade. Uma turma que não se superpõe aos personagens, a exemplo de Byron e Goeth, e tampouco é obscurecida pelas criaturas dos seus escritos, como é característico de Shakespeare. Stevenson nasceu em Edimburgo, Escócia, no dia 13 de novembro de 1850. Era filho de um engenheiro civil, renomado construtor de faróis. Em alusão a esse fato, Borges, numa referência toda especial, destaca um dos poemas de Stevenson que celebra the towers we founded and the lamps we lit (as torres que fundamos e as lâmpadas que acendemos). Não quis seguir a profissão do pai, comprometendo-se a estudar Direito. Nem engenheiro e nem advogado, acabou virando, por vocação, escritor. Desde jovem Stevenson era doente. Muitas das suas biografias falam em problemas respiratórios. De fato, sofria mesmo era de tuberculose, adquirida em conseqüência de uma vida boêmia e cheia de conflitos familiares. A convivência mundana lhe proporcionou farto material e inspiração para suas histórias. Na busca de um clima mais adequado para a sua saúde frágil fez muitas viagens. Bélgica, França e Suíça estavam nesses roteiros; sempre escrevendo e pintando. Dizem que, numa dessas ocasiões, ao chegar a uma pousada, junto com seu irmão, era noite, avistou ao redor do fogo um grupo de pessoas. Entre elas havia duas mulheres. Stevenson apontou para a mais velha, dizendo para o seu irmão que iria se casar com ela. Era uma americana, casada, moradora em São Francisco, e se chamava Lloyd Osbourne. Alguns anos depois soube que ela ficara viúva ou se divorciara, dependendo da fonte, o que não faz diferença (exceto para o marido dela). Viajou até os Estados Unidos, cruzou o país de trem, e pediu Lloyd Osbourne em casamento. Tinha na ocasião 30 anos e foram viver juntos na Escócia. A partir de 1881, Stevenson dedicou-se exclusivamente à literatura. Produziu e publicou muito. Era o ano de 1883, quando em um outono chuvoso, escreveu o clássico "A ilha do tesouro" (Treasure Island), dedicada ao seu filho adotivo, em tantas noites quantos capítulos (34, incluindo o epílogo, conforme a edição brasileira publicada pela Abril Cultural, em 1971). Seu livro mais popular, "O médico e o monstro", tratando das duas naturezas antagônicas da alma humana, saiu em 1886. Em 1887, buscando tratamento de saúde, Stevenson foi para Nova York, onde encontrou boa receptividade de público e editores interessados. Nessa época escreveu The Master of Ballantrae (O Senhor de Ballantrae), outra obra que trata da ambigüidade moral. Motivado, novamente, por problemas de saúde, em 1888, Stevenson empreendeu viagem com a família pelas ilhas do Pacífico Sul. Decidiu então fixar residência em Vailima, Samoa Ocidental, onde viveu o resto da vida e contou com a simpatia e a admiração dos nativos. Nessa fase, escreveu In the South Seas (Nos mares do sul), A Footnote to History (Nota de rodapé da História) e a coletânea de poesia Ballads (Baladas). Também a menos famosa e, para alguns, melhor de suas novelas: The Wreker (O comprador de naufrágios). O homem que viveu em fuga, na busca de saúde, morreu subitamente em Vailima, no dia 4 de dezembro de 1894. (Gilberto R. Cunha é membro da Academia Passo-Fundense de Letras, de Passo Fundo/RS.)

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