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LEMBRANÇAS DO CAPITÃO


Paulo Lot Calixto Lemos

Acredito que a maioria de vocês não conheceu Alvim da Silva Lemos, mas talvez alguns conheçam ou já ouviram falar da famosa “mata do Alvim”. Sua fazenda era lá, dos dois lados da rodovia MG 050, pouco antes da ponte do ribeirão Conquista.

A Santa Maria era uma típica fazenda do sul de Minas Gerais, tinha casa grande, curralama de pau a pique, paiol de milho e mangueiro de capados. Mangueiras, jabuticabeiras, rego d’água e monjolo no fundo da horta. Uma imensa colônia que abrigava todos seus empregados, roças de milho, arroz, feijão e café. O engenho de cana nas épocas áureas produzia açúcar mascavo e a melhor pinga da região. A serraria ajeitava a madeira do gasto e a cerâmica produzia telhas e tijolos famosos pela qualidade. As invernadas sempre ornadas com manadas do elegante gado gir tinham como fundo musical o ranger constante do leva e traz do carro de boi.

Desde rapaz seu Alvim passou a ser chamado de capitão Alvim, dizem que este apelido veio após uma de suas ilações. Naqueles tempos, grandes fazendeiros e capitalistas eram chamados de coronéis; sendo seu Alvim ainda jovem, não tão grande fazendeiro assim, e muito menos capitalista, tentaram apelida-lo de major. Porem esta “patente” ele não aceitou de maneira alguma, alegando:

- Major é o mesmo que vice. E vice não é uma coisa nem outra, não comanda nada! Nem seus superiores nem seus subordinados, portanto prefiro Capitão! Pois esta patente me coloca junto à tropa, me autoriza pelo menos com meus empregados!

O argumento “colou”, e daí em diante passaram a chamá-lo exclusivamente por capitão Alvim.

Capitão Alvim era muito conhecido na pequena Passos de então. Seu estado de espírito sempre alegre e brincalhão tornava-o amigo de todos, inclusive das crianças, pois além de suas brincadeiras, carregava constantemente nos bolsos balinhas de chocolate para presenteá-las. Além de muito espirituoso, o capitão foi talvez o primeiro ecologista da nossa região, pois conscientemente ou não, numa época que ecologia não existia nem como palavra e muito menos como ciência, nunca permitiu a derrubada de sua mata. Até mesmo a lenha para os fornos da cerâmica era comprada, e a serraria trabalhava apenas arvores mortas e já secas. Todavia, em sua época era mesmo famoso por seu bom humor e por seu desprendimento natural. Seus automóveis eram reconhecidos de longe: sempre velhos e sujos, porem com eles, ao chegar da fazenda, uma “via sacra” pela cidade era sagrada: arroz na casa de fulano, feijão na de beltrano, leite para sicrano... Mas uma coisa é certa, seu desprendimento não ia além de mantimentos e afeto, dinheiro não era com ele. Certa feita, numa roda de companheiros, foi indagado em tom de galhofa:

- Mas capitão! Um fazendeirão como o senhor, andar com esse carro velho caindo aos pedaços! Abra a mão e compre logo um “sinca chambord” zero kilometro, aproveite a vida!

- Aproveitar a vida? E o que pensa que estou fazendo? O mesmo prazer que o senhor tem em gastar eu tenho em guardar!

O mais engraçado é que aquele almofadinha não tinha “o que gastar” e muito menos “o que guardar!”.

Em outra ocasião, como toda manhã, enquanto fazia suas compras na cooperativa agropecuária, jogava conversa fora noutra roda de amigos. Prosa vai prosa vem, num determinado momento o capitão joga a isca:

- Não agüento mais minha mulher, não tem dia santo nem feriado. Todo dia ela me pede 100 mil réis... Assim não há cristão que suporte!

Como era de se esperar, todos se assustaram com o tamanho da cifra, mas quem mordeu a isca foi o então presidente da CASMIL (Cooperativa Agropecuária do Sudoeste Mineiro). Pessoa distinta e de muita discrição, o Sr. José Junqueira replicou:

- É muito dinheiro capitão! A Ieda não tem aluguel, não tem padaria e nem conta de farmácia para pagar! O que ela faz com tanto dinheiro assim?

- Uai... Não sei!

- Mas como não sabe capitão?!

- Não sei... Nunca dei!

Naquela época era comum à maioria das fazendas ter seu próprio rebanho de cabras leiteiras. Na Santa Maria não era diferente, e na tentativa de aperfeiçoar sua criação, capitão Alvim adquiriu um pequeno plantel importado da Núbia, enclave localizado no norte da África.

Famosos, mais pela imponência de estilo do que pela produção leiteira, os caprinos nubianos eram animais malhados de negro, possuidores de um imenso par de orelhas e um olhar que misturava displicência e orgulho. E, como em todo plantel, veio junto também o bode. Este sim era posudo! Mas o que o danado tinha de pose, tinha o dobro de atentado. Não havia cerca que o cercava, telhado que ele não empoleirava ou porta de cozinha que o barrava... O bicho era realmente o “cão”. Certo dia enquanto matutava em como se livrar do bode, sentado no alpendre da casa grande, o capitão ouve alguém chamar:

- Ô de casa. Ô de casa!

Era um pequeno fazendeiro da região da Ventania, chamado Francisco Teodoro, acanhado por natureza, capiau por formação, porém ativo por necessidade.

- Boa tarde sô Chico, vamos chegar...

- Boa tarde capitão. A demora é pouca, eu tava de passagem e me alembrei que o senhô pissui uma cabritada famosa de boa... Ai eu pensei: não é que as vêis o capitão tem lá argum cabrito pra me vender? Eu tenho unhas cabrita lá em casa, mas está me fartando um bodinho...

- Ter, ter, eu não tenho não. Mas eu lhe arrumo um melhor que a encomenda. É um bode que é uma maravilha, Nubiano... Sendo para o senhor, eu cedo essa raridade.

- É munta bondade capitão, mas pelo visto deve de sê um animar de munta estima...

- É sô Chico Teodoro, não se vê um animal como esse todo dia... – E emendou gritando o retireiro – Sô Zé! Trague aqui o bode Nubiano, pro amigo poder apreciar...

Num minutinho o bode, que ultimamente ficava trancafiado no curralzinho do barracão, apareceu mais pomposo do que nunca, parecia até estar adivinhando. Cabeça erguida, orelhões alertas, olhar de rei...

- Minha nossa senhora! – Arregalou o capiau – Esse animar deve de sê de munto valor!

Mais que depressa o capitão atalhou:

- Eu lhe disse sô Chico, é melhor que a encomenda. Mas num aveche não que o senhor leva o Nubiano por apenas 80 mil réis!

- Virge Maria! É munto bode pras minhas cabrita! Na verdade eu tava pensando num bodinho comum. Coisa de pouco recurso...

- Sô Chico, eu falei que lhe cedo o bicho, me diga então por quanto o bode lhe serve?

- De jeito manera capitão Arvim! É munto dinheiro! Me farta inté corage pra ofertar!

- Sô moço, daqui de casa ninguém nunca saiu sem ofertar. Não carece de ser o senhor o primeiro...

- Sô Arvim... Num é ofensa não, mas a deferença é munto grande! E eu nem truxe corda prá mode levá o bicho!

- Sô Chico, não é pelo valor, mas sabendo que o senhor precisa do animal, faço questão da sua oferta. Fale homem!

Pressionado, sô Chico fez as contas: Um bode comum podia valer até 3 mil réis, então para não fazer “feio” frente à “boniteza” do Nubiano, aplicou o ágio que lhe era possível e mandou:

- Capitão... Sôr vai me discurpá, ieu sei que é munto poco pr’um trêm bão dessa iguala, mas eu só posso levá o bode por 8 mil réis...

- Sô Chico, comigo é 8 ou é 80. Sô Zé! Traga corda que o amigo tá sem corda!

Paulo Lot Calixto Lemos

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