CI

O conflito entre o público e o privado


Gilberto R. Cunha

A comunidade científica, ligada ao setor público, na área das ciências agrárias, vive um momento delicado, nesse começo de terceiro milênio, frente às opções que lhe são oferecidas, quando o assunto é a priorização/disponibilidade de recursos e o confronto entre interesses públicos e privados no setor de ciência e tecnologia.

Discutir a melhor forma de uso dos recursos públicos não é novidade. Também isso nunca foi exclusividade do setor de ciência e tecnologia, diga-se de passagem. Mas, se alguém quiser uma referência histórica, que fique com Adam Smith e a sua The Wealth of Nations (A riqueza das nações), de 1776. Era o começo do pensamento liberal, exatamente quando as primeiras grandes inovações em tecnologia sinalizavam irreversivelmente o fortalecimento do capitalismo industrial e originavam à aparente eterna discussão do confronto entre interesses públicos e privados. Apesar de Adam Smith nunca ter usado o termo explicitamente, pode ser atribuído a ele o embasamento teórico do conceito de bens ou coisas públicos.

Passada a Segunda Guerra Mundial, indo além de Hiroshima, ficou clara a percepção do papel da ciência e da tecnologia na reconstrução da economia global, na geração de desenvolvimento e na redução da pobreza. Particularmente em agricultura, as Nações Unidas, via o seu programa de desenvolvimento, e o Banco Mundial começaram uma atuação com o enfoque de bens públicos, uma vez que os principais problemas do setor, em várias partes do mundo pobre, extrapolavam os limites nacionais. Eram os anos 1950 e, depois de muitas revisões e reformulações teóricas, ganhou corpo a idéia de bem público em ciência e tecnologia aplicadas à agricultura, cujos resultados concretos passaram a aparecer pós anos 1960.

Sem o rigorismo acadêmico dos economistas de escol, não é difícil entender o conceito de bem público em agricultura. Para o que pretendemos, é suficiente descrever um bem público como um produto ou um serviço que são disponibilizados para todos (sem exclusão), podendo ainda serem usados por várias pessoas ao mesmo tempo (o uso por um não impede o uso por outros). Além do mais, tratam-se de coisas livremente disponibilizadas e, no caso específico do conhecimento, que não são diminuídas pelo uso. Por essa lógica, mesmo sendo passível de identificação alguns bens como mais público do que outros, quem deveria pagar esse tipo de conta seriam os governos das áreas beneficiadas. E foi, também, aí que começaram os problemas, com fundos públicos quase sempre inadequados, que, de forma mais exacerbada, se tornaram evidentes com a entrada em cena da biotecnologia e sua propaganda pragmática da possibilidade de obtenção de lucros nunca antes vislumbrados na história das ciências agrárias, despertando o interesse do capital privado.

Num primeiro momento, os resultados de um amplo esforço internacional apareceram de imediato. Novas cultivares de plantas mais produtivas e melhores técnicas de manejo de culturas, por exemplo, espantaram o espectro da fome, por falta de alimentos, que rondava várias regiões do mundo. O sucesso no uso da ciência para melhorar a agricultura foi evidente, caracterizando um período da história da agricultura mundial que se convencionou chamar de Revolução Verde, idolatrada por uns e muito criticada por outros. Esse período também já passou. No trigo e no arroz, tem-se o seus exemplos mais marcantes, que levaram, inclusive, pelo trabalho com trigo, à concessão do Prêmio Nobel da Paz para o dr. Norman Borlaug, em 1970.

Durante um bom tempo, a pesquisa agrícola no mundo foi quase que exclusivamente de natureza pública. Seu resultados - tecnologias, produtos e serviços - viravam bens públicos ou coisas públicas. Também as informações científicas e tecnológicas, até por isso, acabavam sendo trocadas com uma maior liberdade. A lógica era a sempre lembrada: “em benefício da sociedade”. Isso não significa que o setor privado estava ou esteja impedido de produzir bens públicos. Ou que não o tenha feito. Mas, geralmente não o faz pela dificuldade em recuperar os investimentos. Também não implica que os bens públicos não dêem retorno. Pelo contrário: os benefícios sociais da pesquisa agrícola pública foram e são enormes.

Vieram os anos 1990, um novo século chegou e, com ele, muitas mudanças no ambiente de ciência e tecnologia para a agricultura. Novas oportunidades e também muitas barreiras. Diminuição de recursos públicos e, paralelamente, controvérsias e mais controvérsias incendiando um debate interminável sobre patenteamento de genes e de seres vivos, direitos sobre uso de recursos genéticos, preocupação com a biopirataria e, indubitavelmente, por trás de tudo, o predomínio do setor privado em biotecnologia para uso agrícola.

Num ambiente de recursos escassos e problemas cada vez mais complexos, vive atônita a comunidade científica do setor público de pesquisa agrícola, tanto do Brasil quanto de vários países do mundo. Uma nova circunstância, nunca antes experimentada, com discordância e interesses explícitos sobre intercâmbio e uso de recursos genéticos, direitos sobre propriedade intelectual, domínio tecnológico, a controvérsia dos organismos geneticamente modificados (os populares transgênicos), o crescimento do poder político e econômico do setor privado e, acima de tudo, a preocupação com a eqüidade científica e social.

Ninguém questiona que o negócio melhoramento genético para fins agrícolas deslanchou no mundo. Cresceram os investimentos das grandes corporações, com compras de programas de melhoramento vegetal, fusões de empresas, contratação de cientistas do setor público, etc. Evidentemente que motivados pelo potencial de reclamar direitos de propriedade intelectual sobre cultivares, genes, alelos, processos, etc. Nunca houve tanta proliferação de patentes e outras formas de proteção de propriedade intelectual na agricultura como nos últimos tempos, particularmente em biotecnologia.

Nesse ambiente de competitividade e escolhas difíceis, passou-se a exigir muito mais dos cientistas agrícolas que treinamento e eficiência disciplinar. Acima de tudo: uma visão de mundo um pouco mais além dos muros das corporações. As convenções legais e sociais estão mudando, e de forma tão rápida que, sem um mínimo de atenção, não se percebe. Não são poucas, por exemplo, as pressões para o setor público se comportar como o privado em pesquisa agrícola.

Muito mais que competitivos os setores públicos e privados, que se dedicam à pesquisa agrícola, são, em alguns aspectos, complementares. Não implica que algumas coisas não possam ser supridas pelo setor privado, e nem que o governo tenha obrigação de, necessariamente, produzir outras. O desenvolvimento econômico e social pode requerer um balanço entre os dois setores. Mais ainda: ambos são necessários para possibilitar respostas a uma variedade de problemas. Dependendo do direcionamento do setor privado, o público pode se movimentar, com preocupações de base, buscando a recuperação de investimentos a mais longo prazo.

A comunidade científica não pode mais ignorar a questão da propriedade intelectual, por razões óbvias, uma vez que qualquer nova tecnologia está fortemente associada a este tema. Lamentavelmente, a maioria dos cientistas brasileiros (repetindo um padrão dos países em desenvolvimento) não tem hábito de leitura e redação de patentes. A implicação desse comportamento é que pode ser desperdiçado esforços e recursos na busca de coisas que já foram alcançadas por outros ou uma revisão incompleta do conhecimento, uma vez que muito da informação contida em patentes jamais chega à literatura aberta. Também há que se considerar a existência de uma contribuição considerável de brasileiros na literatura científica especializada, disseminando informações que podem ser livremente apropriadas por outros indivíduos e corporações, principalmente no exterior (transformando a informação em produtos e processos).

Cada vez mais os instrumentos de proteção de propriedade intelectual farão parte da vida da comunidade científica atuante nas ciências agrárias. No melhoramento de plantas, além dos direitos dos melhoristas vegetais (proteção de cultivares), também se pode incluir o patenteamento, copyrights (bases contendo seqüências de genes, por exemplo), marcas comerciais, indicações geográficas (denominação de origem) e segredos comerciais. E, paralelamente, sem esquecer os direitos dos agricultores (particularmente os pobres) em produzir as suas próprias sementes.

O ambiente das ciências agrárias no Brasil, com certeza, não é mais o mesmo de poucos anos atrás. Muitas coisas não são ainda bem entendidas, embora inquestionáveis. Primeiro: o setor privado tem que exercer os seus direitos de propriedade intelectual. Segundo: o setor público também tem esse direito e pode fazê-lo, até para proteger um bem e mantê-lo sob domínio público. Terceiro: nada impede arranjos cooperativos entre setores público e privado, via licenciamentos e outras formas de proteção de direitos de propriedade.

(Gilberto R. Cunha é pesquisador da Embrapa Trigo e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

Assine a nossa newsletter e receba nossas notícias e informações direto no seu email

Usamos cookies para armazenar informações sobre como você usa o site para tornar sua experiência personalizada. Leia os nossos Termos de Uso e a Privacidade.