
Texto publicado originalmente no Guia Lotus (abril 2001) Brasília
Aquecimento global, buraco na camada de ozônio, desertificação, explosão da pobreza e da violência, poluição generalizada, superbactérias e vírus exóticos, fim do petróleo e da civilização baseada nele, e agora, para exasperar as dificuldades que viverão nossos filhos, comida adulterada geneticamente!
Os alimentos geneticamente modificados estão no centro de um debate quase sempre mal encaminhado, no entanto decisivo para nosso futuro. A favor estão as empresas de “biotecnologia” (prefiro dizer “tecnobiologia”) apoiadas por quem comunga dos mesmos interesses comerciais e expectativas profissionais. Contra, as associações de consumidores, organizações ecológicas, grupos de defesa dos direitos humanos e milhões de pessoas que, em todo mundo, já reagem à alteração de sua alimentação.
Embora o principal motivo que levou as empresas de tecnobiologia a desenvolverem sementes transgênicas tenha sido a perspectiva de aumentar seus lucros, os argumentos que apresentam são bem mais refinados e altruístas. Porém podem ser facilmente contestados, como veremos a seguir:
Argumento da maior produtividade. Na verdade, as pesquisas revelam que não há ganho notável, o que há muito é publicidade. Plantios convencionais, se bem conduzidos, inclusive por métodos orgânicos e ecológicos, podem ser mais produtivos que os plantios transgênicos. E não exigem a compra anual de novas sementes, como acontece com as transgênicas, que são até patenteadas. Além disso, de que adianta aumentar a produtividade se o produto final não é mais o mesmo vegetal de que se tratava originalmente? Comida modificada é uma contrafação somente viável numa sociedade que considera bustos e nádegas de silicone e músculos anabolizados tão admiráveis quanto os naturais.
Argumento do menor uso de agrotóxicos. Na verdade, quem reduz, ou melhor, elimina os agrotóxicos é a agricultura orgânica, ecológica e natural, também conhecida há décadas como agricultura biológica. Ressalvo este fato por que as empresas de tecnobiologia andam insinuando que elas é que são BIOlógicas, como se percebe por seu palavreado: biotecnologia, biossegurança, CTNBio, ANBio, BIO (Biotechnology Industry Organization), e até mesmo bioalimentação – como li no depoimento de diretor da Monsanto no Congresso, em ezembro de 2000. Realmente, hoje os dois principais cultivos transgênicos no mundo são o de milho - alterado geneticamente para se tornar venenoso para lagartas de mariposas e borboletas, reduzindo-se assim o uso de lagarticidas -, e o de soja - alterada para se tornar resistente a herbicidas (produzidos pelas mesmas empresas de tecnobiologia que produzem as sementes de soja transgênica) tão potentes que eliminam todos os vegetais da área, menos os alterados geneticamente para se tornarem imunes a eles. Reduz-se a quantidade de herbicidas, mas aumenta-se a intensidade (e toxidez) dos que são utilizados. Como os transgênicos são apenas mais uma extravagância da agricultura industrial moderna, totalmente dependente da indústria petroquímica, prossegue o uso intensivo de fertilizantes químicos e de agrotóxicos como inseticidas e fungicidas, além dos próprios herbicidas. Tal agricultura é insustentável e só conduz à morte dos solos, à contaminação das águas e dos alimentos, e prejudica a saúde dos consumidores.
Argumento da competitividade internacional. Alegam os pró-transgênicos que se o Brasil não adotar já a “bioagricultura”, seus produtos acabarão mais caros que os transgênicos oferecidos (a preços cada vez mais desvalorizados) por outros países exportadores de “commodities” agrícolas, notadamente Estados Unidos, Canadá e Argentina. Na verdade, por mais barato que esses produtores se disponham a vender seus produtos adulterados, cresce nos países importadores (Europa, Japão, Taiwan etc.) a resistência a eles. E esta resistência vai crescendo à medida que ocorrem fenômenos como a vaca-louca e “acidentes” como a venda a humanos, nos EUA, Japão e Europa, de um tipo de milho transgênico americano só liberado (pelos próprios EUA) para o consumo animal. A “moratória” que hoje impede o plantio e a comercialização de transgênicos no Brasil, conquistada na justiça em 1999 pelo IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor, já beneficia o país, pois os europeus e asiáticos ricos estão descobrindo que nossos produtos agrícolas são autênticos, normais, e se dispõem a pagar melhor por isso. Aliás, foi graças ao Brasil adotar, no manejo do gado, práticas mais convencionais – menos “cientificamente produtivas” que as européias e americanas – que estamos escapando do pesadelo da vaca-louca.
Argumento do avanço científico. Na verdade, os “avanços científicos” podem nos levar em qualquer direção, algumas de interesse público, outras prejudiciais à humanidade e à natureza. Não se trata de ser contra a pesquisa genética, mas devemos ser cautelosíssimos com sua exploração comercial e radicalmente contrários à sua generalização indiscriminada. Não podemos aceitar que sejam alteradas as proteínas dos alimentos que consumimos, pois isso significa nos alterarmos também, a longo prazo, com conseqüências imprevisíveis, mas mais provavelmente deletérias. Ao contrário, devemos melhorar a qualidade biológica da alimentação das populações humanas, para melhorar sua saúde e suas vidas. É constrangedor ver autoridades do governo alegando que “não podemos ficar para trás nesta nova tecnologia, como ficamos para trás na informática”, sem perceberem que “não somos máquinas, gente é o que somos”.
Argumento do combate à fome. Na verdade, a fome no mundo não se deve à falta de alimentos, mas à falta de acesso - principalmente econômico - a eles ou aos meios – inclusive à terra - para produzi-los. Querem mesmo combater a fome dos pobres? Então ajudem as comunidades populares a conhecerem e praticarem a agricultura urbana, a reciclarem seu lixo orgânico em húmus de alta qualidade, a cuidarem de sua saúde pela alimentação natural e 95% vegetariana. E não deixem de apoiar ativamente a reforma agrária brasileira e os pequenos agricultores familiares, que produzem a maior parte dos alimentos que consumimos. E mais, exijam consumir alimentos integrais, não refinados e depauperados de suas vitaminas, proteínas e fibras vegetais. Não precisamos de alimentos “enriquecidos geneticamente” – basta não se depauperar os naturais.
Argumento da inevitabilidade dos riscos. Na verdade, os defensores dos transgênicos sofismam quando comparam os riscos trazidos por esses produtos com os riscos trazidos pelo uso de remédios (com potenciais efeitos colaterais) ou até pelo uso de aviões. Esquecem-se de que só toma remédio ou viaja quem precisa ou deseja - e a tanto se dispõe; enquanto que todos nós precisamos comer diariamente. É óbvio que mudar nossa alimentação afetará toda a população e sua/nossa descendência.
Danos à saúde e ao meio ambiente.
Por outro lado, os pró-transgênicos tentam negar os motivos de precaução apontados por seus opositores. Sobre os riscos para a saúde, argumentam que até hoje não foram detectados problemas de saúde entre os bilhões de consumidores nos países que liberaram os alimentos alterados geneticamente. Mas tal argumento é ridículo, se consideramos que o consumo de transgênicos é muito recente (cerca de seis anos) para revelar efeitos que surgirão após seu uso crescente, continuado, indiscriminado, generalizado e recombinado, por algumas gerações. Além disso, já houve casos de alergia e já há milhares de processos, nos EUA, de pessoas que se sentiram afetadas após consumirem milho só liberado para animais (por seu alto potencial alergênico). E alergia não é só espirrar ou ficar empolado; pode levar a crises de diarréia, ao choque anafilático e até à morte. Aguardem.
Também os riscos de danos à natureza, sempre minimizados pelos promotores da “bioagricultura”, já estão sendo comprovados, revelando como inevitável a “poluição genética” do meio ambiente. Antes temíamos pela extinção das espécies, hoje precisamos combater a introdução de novas, que não passaram pelo processo natural que já eliminou o que nos seria especialmente prejudicial. Imaginem se a toxidade lagarticida do milho transgênico (que advém da introdução nele de um gene extraído de uma bactéria tóxica a lagartas) se transferisse para outros vegetais, aparentados ou não com o milho? Pois esta possibilidade (quem impediria um gene de migrar?) já foi comprovada nos EUA.
É importante adotar-se aqui o “princípio da precaução” conforme definido pelos cientistas preocupados com os perigos que certas tecnologias (como a nuclear e a genética, por exemplo), criam para as populações. Para tais tecnologias e seus produtos, não pode valer o princípio jurídico válido para os humanos: “todos são inocentes até prova em contrário”, mas o contrário: cabe aos produtores provar que os produtos são “inocentes”, inócuos para a humanidade a longo prazo. Ora, ninguém pode provar a inocuidade dos transgênicos; pelo contrário, podemos prever que as doenças degenerativas, a violência social e o caos ambiental aumentarão ainda mais.
Tu és o que tu comes
Mas o que mais me impressiona, nesta disputa, é termos de enfrentar empresas e instituições acadêmicas e governamentais que não se importam com o impacto profundo e a longo prazo, em nossos descendentes, que resultará da alteração genética das proteínas que compõem nossos alimentos. Hoje é apenas a soja e o milho, mas já se pesquisa alterar o arroz, o feijão, o trigo, a batata, a alface, a cenoura, o mamão, a manga etc. Imaginem essa tendência após 10, 20, 50 anos de liberação. Ninguém mais saberá o que estará a comer. A humanidade já demonstra sinais de decadência biológica, de deficiência imunológica, de suscetibilidade a doenças degenerativas, de brutalização e – mais recentemente – de imbecilização. Abandonar os alimentos normais, providos pela natureza, em prol de outros concebidos por interesses os mais diversos, só agravará tal deterioração – individual e social – e aumentará a incerteza quanto à eficácia de qualquer solução para ela.
Nossos governantes e os meios de comunicação garantem que o futuro é transgênico, que nada podemos fazer diante dessa inexorabilidade. Bombardeiam-nos com factóides sobre o “livro da vida” enfim decifrado, o fim das doenças e falam até na perspectiva da imortalidade. Porém o que vemos é o recuo das áreas plantadas com transgênicos nos EUA, devido à resistência nos países compradores e mesmo no mercado interno. Na Europa e Ásia, a regulamentação se torna cada vez mais rígida, inclusive exigindo rotulagem bem explícita quando houver ingredientes alterados. E uma vez identificado como transgênico, o produto acaba rejeitado pelos consumidores. Não tem sido bom negócio para as empresas e investidores aplicar em produtos que ninguém quer nem precisa
De qualquer modo, fiquemos de olho. O governo e as empresas de tecnobiologia são incansáveis. Em 28 de dezembro passado, entre o Natal e o Ano Novo, escamoteada entre a troca de nome da Petrobrás e a MP que inviabilizava o trabalho dos procuradores da República, o governo editou medida provisória aumentando a autonomia da CTNBio para liberar transgênicos (e sem rotulá-los), enfraquecendo as razões jurídicas que hoje ainda nos protegem. É incrível que um governo que clama contra a violência, alardeia os direitos humanos, e abarrota as prisões com usuários e mercadores de drogas ilícitas, queira nos empurrar - a todos nós - essas tecnoporcarias.
Joaquim Moura, editor do Jornal Feliz, é ecologista radical,
agricultor urbano e 95% vegetariano desde 1975.
(61) 272-0543 & [email protected]
http://membro.intermega.com.br/comidatransgenica
http://www.geocities.com/jmbmoura