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Biotecnologia Aplicada: Transformando Subprodutos Agrícola



Augusto Ichisato

Biotecnologia Aplicada: Transformando Subprodutos Agrícolas em Ingredientes Funcionais

A busca por sistemas alimentares mais sustentáveis e eficientes tem impulsionado a indústria a repensar seus processos produtivos. Nesse contexto, a biotecnologia emerge como ferramenta fundamental para transformar o que antes era considerado resíduo em ingredientes de alto valor agregado. Um exemplo notável dessa tendência é o recente investimento da FS, uma das maiores produtoras de etanol de milho do Brasil, em tecnologia para converter vinhaça em proteína funcional para nutrição animal.

Da Vinhaça à Proteína: Um Caso de Inovação Brasileira

A vinhaça, subproduto da produção de etanol, historicamente representou um desafio ambiental para o setor sucroenergético. Rica em matéria orgânica e nutrientes, sua disposição inadequada pode causar impactos significativos em solos e recursos hídricos. No entanto, o que antes era visto como problema agora se transforma em oportunidade através da biotecnologia.

A FS, em parceria com uma startup finlandesa especializada em biotecnologia, está desenvolvendo um processo inovador que utiliza microorganismos especializados para converter os nutrientes presentes na vinhaça em proteína unicelular (Single Cell Protein - SCP). O projeto, que conta com apoio da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), prevê a instalação de uma planta piloto já em 2026.

A proteína unicelular obtida desse processo apresenta perfil nutricional comparável ao de fontes convencionais, com a vantagem de não competir por áreas agricultáveis. Esta característica é particularmente relevante no contexto atual de busca por fontes proteicas alternativas e sustentáveis.

O novo ingrediente funcional deverá ser comercializado inicialmente no Brasil, com planos de expansão para mercados internacionais como Equador e Chile. O foco inicial será a nutrição de espécies aquícolas, segmento que demanda fontes proteicas de alta qualidade e enfrenta desafios relacionados à sustentabilidade de insumos tradicionais como a farinha de peixe.

Milho de Segunda Safra: Matéria-Prima para Biorrefinarias

Outro aspecto interessante desse desenvolvimento é a utilização do milho de segunda safra como matéria-prima para a produção de etanol e, consequentemente, da vinhaça que será transformada em proteína. A segunda safra de milho, também conhecida como "safrinha", representa hoje cerca de 75% da produção nacional do cereal, com aproximadamente 88 milhões de toneladas na safra 2024/2025.

O aproveitamento do milho de segunda safra para a produção de etanol já representa um avanço significativo em termos de eficiência do uso da terra. Agora, com a transformação da vinhaça em proteína, observa-se um exemplo concreto do conceito de biorrefinaria, onde se busca o aproveitamento integral da biomassa.

A biorrefinaria, conceito análogo ao da refinaria de petróleo, visa extrair o máximo valor possível de uma determinada matéria-prima biológica, minimizando resíduos e maximizando a eficiência energética e material. No caso da FS, o milho é processado para produção de etanol (combustível renovável), DDG (Dried Distillers Grains, coproduto utilizado como ração animal) e, agora, a vinhaça será convertida em proteína funcional.

Biotecnologia e Economia Circular na Indústria de Alimentos

O caso da transformação da vinhaça em proteína ilustra um movimento mais amplo de aplicação dos princípios da economia circular na indústria de alimentos. A economia circular propõe um modelo econômico regenerativo e restaurativo por design, onde o valor dos produtos, materiais e recursos é mantido pelo maior tempo possível, e a geração de resíduos é minimizada.

A indústria de alimentos tradicionalmente opera em um modelo linear de 'extrair-produzir-descartar', mas observa-se uma transição gradual para modelos circulares. A biotecnologia é uma aliada fundamental nessa transição, pois permite transformar subprodutos em novos ingredientes com funcionalidades específicas.

Além da vinhaça, outros subprodutos agroindustriais estão sendo valorizados através da biotecnologia:

1. Bagaço de cana-de-açúcar: Tradicionalmente utilizado para geração de energia, agora também serve como matéria-prima para a produção de xilooligossacarídeos (XOS), prebióticos que promovem o crescimento de bactérias benéficas no intestino.

2. Casca de arroz: Rica em sílica, está sendo utilizada para a produção de nanopartículas com aplicações em embalagens ativas e inteligentes para alimentos.

3. Soro de leite: Subproduto da fabricação de queijos, é transformado em proteínas concentradas e isoladas com aplicações em diversos produtos alimentícios.

4. Caroço de açaí: Após a extração da polpa, o caroço pode ser processado para obtenção de compostos antioxidantes e fibras alimentares.

A evolução das tecnologias de bioprocessamento tem permitido enxergar os subprodutos agroindustriais sob uma nova perspectiva. Com as ferramentas biotecnológicas disponíveis atualmente, praticamente qualquer biomassa pode ser convertida em ingredientes de valor agregado, desde que haja viabilidade técnica e econômica.

Desafios Técnicos e Regulatórios

Apesar do potencial promissor, a transformação de subprodutos agrícolas em ingredientes funcionais enfrenta desafios significativos. Do ponto de vista técnico, a escalabilidade dos processos biotecnológicos é um dos principais gargalos.

Muitas vezes, um processo que funciona perfeitamente em escala laboratorial enfrenta dificuldades quando ampliado para escala industrial. Fatores como transferência de massa e calor, homogeneidade do meio e controle de contaminações tornam-se críticos em biorreatores de grande porte.

Outro desafio importante está no campo regulatório. Ingredientes obtidos por processos biotecnológicos inovadores frequentemente enfrentam um longo caminho até a aprovação pelos órgãos reguladores.

No Brasil, a ANVISA tem avançado na regulamentação de novos ingredientes, mas ainda há um caminho a percorrer para agilizar os processos sem comprometer a segurança. Para ingredientes destinados à nutrição animal, o MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) tem demonstrado abertura para inovações, desde que devidamente respaldadas por evidências científicas de segurança e eficácia.

A proteína unicelular derivada da vinhaça, por exemplo, precisará passar por extensivos testes de segurança, digestibilidade e eficácia nutricional antes de ser aprovada para comercialização. Além disso, aspectos como estabilidade durante o processamento e armazenamento, interações com outros ingredientes e impactos sensoriais nos produtos finais precisam ser cuidadosamente avaliados.

O Papel do Engenheiro de Alimentos nesse Cenário

A transformação de subprodutos agrícolas em ingredientes funcionais representa um campo fértil para a atuação do engenheiro de alimentos. Diferentemente de outras disciplinas que focam apenas na produção agrícola ou nos aspectos nutricionais, a engenharia de alimentos possui as ferramentas e conhecimentos necessários para atuar em toda a cadeia de valor.

O engenheiro de alimentos tem formação multidisciplinar que o capacita a compreender tanto os aspectos biológicos quanto os tecnológicos envolvidos nesses processos. Além disso, sua formação inclui conhecimentos sobre análise sensorial, reologia, operações unitárias e desenvolvimento de produtos, essenciais para transformar um ingrediente funcional em um produto comercialmente viável.

No caso específico da proteína derivada da vinhaça, o engenheiro de alimentos pode contribuir em diversas etapas:

1. Otimização do bioprocesso: Definindo parâmetros ótimos de fermentação, sistemas de controle e estratégias de downstream processing.

2. Caracterização do ingrediente: Avaliando propriedades físico-químicas, funcionais e nutricionais.

3. Desenvolvimento de aplicações: Criando formulações que aproveitem as características específicas do novo ingrediente.

4. Estudos de estabilidade: Garantindo que o ingrediente mantenha suas propriedades ao longo da vida útil.

5. Avaliação de impactos sensoriais: Assegurando que a incorporação do ingrediente não comprometa as características organolépticas dos produtos finais.

A capacidade de traduzir conceitos científicos em soluções práticas é fundamental para o sucesso comercial desses novos ingredientes, e o engenheiro de alimentos está bem posicionado para desempenhar esse papel.

Perspectivas Futuras e Oportunidades para o Brasil

O Brasil, como potência agrícola mundial e detentor de imensa biodiversidade, possui condições privilegiadas para liderar a transformação de subprodutos em ingredientes funcionais. O país gera anualmente milhões de toneladas de resíduos agroindustriais que poderiam ser valorizados através da biotecnologia.

O país possui matéria-prima abundante, conhecimento científico e um setor industrial em busca de inovação. O que se faz necessário agora é intensificar os investimentos em pesquisa aplicada e criar um ambiente regulatório que favoreça a inovação responsável.

Além dos benefícios econômicos diretos, a transformação de subprodutos em ingredientes funcionais contribui para objetivos mais amplos de sustentabilidade. A redução do descarte de resíduos, a menor pressão sobre recursos naturais e a diminuição da pegada de carbono são benefícios adicionais desse modelo.

As possibilidades da biotecnologia aplicada a subprodutos agrícolas ainda estão sendo exploradas. À medida que avançamos em técnicas como engenharia metabólica, biologia sintética e fermentação de precisão, novas possibilidades surgirão para valorizar biomassas atualmente subutilizadas.

O caso da FS e sua iniciativa de transformar vinhaça em proteína funcional representa um exemplo concreto desse potencial. Ao conectar dois setores importantes do agronegócio brasileiro – produção de milho e aquicultura – através da biotecnologia, a empresa não apenas cria valor econômico, mas também contribui para um sistema alimentar mais circular e sustentável.

Conclusão

A transformação de subprodutos agrícolas em ingredientes funcionais através da biotecnologia representa uma fronteira promissora para a indústria de alimentos. O caso da conversão da vinhaça em proteína unicelular ilustra como a engenharia de alimentos pode contribuir para agregar valor a materiais anteriormente considerados resíduos, criando novas cadeias de valor no agronegócio.

Para o Brasil, país com vocação agrícola e abundância de biomassa, essa abordagem oferece oportunidades significativas de inovação e diferenciação no mercado global de ingredientes. No entanto, para que esse potencial se concretize plenamente, são necessários investimentos contínuos em pesquisa e desenvolvimento, formação de recursos humanos qualificados e um ambiente regulatório que equilibre segurança e estímulo à inovação.

O engenheiro de alimentos, com sua formação multidisciplinar e visão integrada da cadeia produtiva, tem papel fundamental nesse processo de transformação. Sua capacidade de conectar conhecimentos de diferentes áreas – da microbiologia à engenharia de processos, da análise sensorial ao desenvolvimento de produtos – o posiciona como agente-chave na criação de soluções biotecnológicas viáveis e sustentáveis.

À medida que avançamos para sistemas alimentares mais circulares e eficientes no uso de recursos, a biotecnologia aplicada a subprodutos agrícolas certamente ocupará um lugar cada vez mais importante no portfólio de soluções para os desafios globais de segurança alimentar e sustentabilidade.

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*Augusto Ichisato é Engenheiro de Alimentos e atua como colunista no portal Agrolink e é fundador da FoodBrasil, iniciativa que conecta profissionais da área de alimentos.*
 

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