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Davos faz a autocrítica; falta a esquerda


Antonio Carlos Moreira
Incrustada nos Alpes cobertos de neve no inverno suíço, a cidadezinha de Davos, com 12 mil habitantes, realiza o Fórum Econômico Mundial, este ano sob um clima bem mais apreensivo. A partir desta terça-feira, 17, até sexta-feira, o conclave de chefes de estado, empresários, acadêmicos e ativistas de dezenas de países deve refletir as vicissitudes do ano que findou.

Criticado por algumas correntes como o encontro da elite capitalista, realmente Davos não é um tribunal a impor diretrizes a governos e empresas. Se o Fundo Monetário Internacional, FMI, perdeu o status – felizmente, muitos dirão – de farol da economia e se a ONU está longe de estabelecer a ordem no caos, é fato que o Fórum de Davos se constituiu, nas últimas décadas, um proveitoso espaço de reflexão sobre questões globais.
O evento foi criado como Fórum Europeu de Gestão, em janeiro de 1971, pelo alemão Klaus Schwab, professor na Universidade de Genebra. Schwab atraiu empresários da Europa para Davos sugerindo adotarem modelos de gestão pública e nos negócios vigentes nos Estados Unidos – ou seja, uma espécie de welfare state “de resultados”.
Naquele início de 1971, também o mundo lamentava perdas ilustres, como agora. Meses antes, morriam os ídolos Jimmy Hendrix e Janis Joplin, o matemático inglês Bertrand Russel e o presidente francês Charles de Gaulle, um dos principais articuladores da União Europeia. Auge da guerra fria, também não faltavam motivos para sombrias preocupações mundiais.
Auge da Guerra Fria, não faltavam, como nos dias de hoje, motivos para sombrias preocupações. A União Soviética colocava em órbita a estação espacial Salyut 1, um feito na corrida galáctica, mas sem igualar ao dos norte-americanos que, dois anos antes, haviam pousado na Lua.
Conflitos no Oriente Médio opunham a ucraniana-israelense Golda Meir e o egípcio Yasser Arafat, da Organização para Libertação da Palestina, OLP. O acirramento da disputa na região eclodiria, dois anos depois, a Guerra do Yom Kippur – estopim da crise mundial do petróleo, com aumento em 400% nos preços, engendrado por países árabes em reação ao apoio norte-americano a Israel.

Sob tal cenário, a partir de 1974 líderes mundiais foram convidados a expor suas diferenças em Davos. Na edição de 1989, já com o nome alterado, dois anos antes, para Fórum Econômico Mundial, os ministros da Alemanha debatem a reunificação, um réquiem da queda do Muro de Berlim, no final daquele ano. Em 1992, o presidente sul-africano Frederik De Klerk e o líder Nelson Mandela trocam o histórico abraço. De Bill Clinton a Angela Merckel, de Wladimir Putin a Xi Jinping, presidente da China, não houve chefe de nação importante que não tivesse atendido a Davos.
O ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva estreou em 2003. Repetiu a presença em 2005 e, em 2010, recebeu do Fórum o prêmio de Estadista Global. Ou seja, Lula não era o esquerdista que as empresas temiam nem Davos era o demônio neoliberal pintado pelos fundadores do Fórum Social Mundial.
O Fórum Social surgiu em 2001, “com o objetivo de se contrapor ao Fórum Econômico, que defende as políticas neoliberais em todo mundo” (www.fsmpoa.com.br). Os três primeiros se realizaram a 10.500 quilômetros de Davos: em Porto Alegre. E não por acaso.
A capital gaúcha se constituía um potentado do Partido dos Trabalhadores. Ali, se forjaram algumas de suas principais lideranças, intelectuais e fundadores do MST; prefeitos vitoriosos se revezaram por 24 anos ininterruptos, entre 1988 e 2012.
Em 2004, o Fórum Social se realizou em Mumbai, na Índia. Em 2006, ocorreu descentralizado em três países: Venezuela, Mali e Paquistão. 
Ambos, cada Fórum a seu modo e visão de mundo, alimentaram utopias que, ao fim e ao cabo, hoje se chocam com árduas e complexas realidades.
O Fórum Econômico confiou na globalização como indutora do progresso. Este ano, as dezenas de papers do painel “Globalização para os 99%” (http://migre.me/vSNaY) propõem uma ampla reflexão. Seu criador, Klaus Schaub, admite: “A frustração aumenta nos segmentos da sociedade que não estão experimentando desenvolvimento econômico e progresso social.”
Davos faz seu mea-culpa. Será digna de aplausos se a esquerda se propuser uma revisão dos quinze anos em que governou o país. Lembra o ensaísta político Luiz Sérgio Henriques, porém, a autocrítica é um difícil exercício, pois a avaliação rigorosa dos próprios atos sugere a ideia de fraqueza. “No caso dos organismos políticos, é abrir o flanco ao inimigo.”
Assim, talvez seja torcer demais para que, embora interrompida por coros de repúdio ao “golpe”, a partir do Fórum Social haja a reflexão sobre a práxis hegemônica de governo que vinculou classe ao partido, anestesiou os movimentos sociais responsivos e ainda exorbitou das benesses do poder. Enfim, não cuidaram que – novamente citando Sérgio Henriques – a exacerbação irracional do conflito só pode levar à ruína generalizada.
 

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