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ESPECIAL: A carne é forte; o agronegócio, vital


Antonio Carlos Moreira

ANTONIO CARLOS MOREIRA*

 

Duas semanas após deflagrada a operação Carne Fraca, diversos aspectos sobre o escândalo têm sido analisados e especulados – desde os números do mercado mundial da carne e a forma como a Polícia Federal levou o fato a público, aos interesses abomináveis que aproximam certas empresas e agentes públicos.

À medida que se esclarecem certas suspeitas da PF para deflagrar a operação, como o uso do ácido ascórbico como conservante ser regulamentado por órgãos internacionais, perde força o receio dos consumidores quanto à segurança da carne. Para demonstrar cautela, redes de supermercados suspendem a comercialização de produtos das marcas sob suspeita. Os impactos mais fortes ocorrem no mercado externo.

Cerca de cem países, entre os 156 importadores, suspenderam compras ou barraram desembarques nos portos.  Até o anuncio da operação, as importações representavam receitas diárias, em média, de US$ 63 milhões, desabaram para meros 74 mil dólares, queda de 99%. As projeções da Associação dos Exportadores do Brasil, AEB, apontam perdas de cerca de US$ 2 bilhões nas vendas internacionais.

Apesar desta ordem de grandeza econômica, quando a conjuntura do agronegócio é colocada em perspectiva, conclui-se que a crise sobre o setor de carnes não se perdurará por longo prazo.

Não se trata de desdenhar a força dos concorrentes internacionais, como Estados Unidos e Austrália. Também não se pode minimizar os cuidados com a saúde dos consumidores. Muito menos absolver os inomináveis agentes públicos e empresários de frigoríficos pelos danos causados à economia e, mais grave, aos prejuízos intangíveis na imagem, já combalida, do País no Exterior.

Ao contrário, há uma lição crucial a ser aprendida desse terrível episódio: eleger uma agenda estratégica em consonância com um dos mais importantes setores da economia. O que significa pensar o futuro sustentado brasileiro.

 

Quando o Brasil era grande importador – de carnes

Uma primeira evidência a afastar o risco de uma crise profunda e duradoura nas cadeias do agronegócio ligados à carne – culturas de soja, sorgo e milho e de insumos agrícolas – é sua bem sucedida revolução dos bichos, ocorrida nas últimas décadas nos rebanhos e granjas do Brasil afora.

É equivocado supor que o País se tornou um grande produtor de carne graças à relação de interesses entre grandes frigoríficos e os governantes recentes. A alavancagem de certos grupos do setor foi exponencial na última década, mas o Brasil já se tornara um grande player mundial por outros fatores.

Até o início dos anos 1970, a produção nacional de alimentos estava longe de alcançar escala internacional – exceto café e açúcar. A pesquisa agropecuária restringia-se a poucas ilhas de conhecimento, com o IAC, de Campinas e, a partir de 1974, a Embrapa.

O modorrento rebanho bovino arrastava-se em pastagens extensivas e de baixo valor nutricional por cinco anos, em média, até a carne chegar aos açougues. Eram anos em que o País importava, além de carne, diversos alimentos para atender a demanda interna.

A revolução pecuária teve início em meados dos anos 1970. A carne bovina aumentou de 1,2 mil toneladas, em 1975, para 9,6 mil toneladas, em 2016, alcançando a vice-liderança mundial. Nos últimos quinze anos, as exportações aumentaram em 731%, alcançando mais de 150 países. Totalizou US$ 12,5 bilhões – terceiro mais importante item na balança comercial, depois de soja e minério de ferro. A produção ganhou em sustentabilidade: mesmo com o forte incremento da produção, as áreas de pastagem reduziram em 2%.

A carne brasileira nutriu-se, sobretudo, de ciência, como lembra Maurício Lopes, presidente da Embrapa, que coordena a Rede Genômica Animal. A iniciativa reúne 123 cientistas de dezenas de instituições nacionais e internacionais dedicados ao melhoramento genético. A capacidade produtiva do animal ou resistência a determinadas doenças são respostas obtidas em poucas semanas, enquanto antes demorava anos; o custo caiu para cerca de mil dólares, contra perto de um milhão de dólares, anos atrás. Além de gado bovino, rebanho de leite, ovelhas, suínos e peixes estão no radar da pesquisa.

 

O velho garrote do protecionismo

Será inaceitável nos vangloriarmos da nossa competitividade como fornecedor de proteína animal, mas o fato é que o mundo possui, hoje, dependência física da carne brasileira. 

Segundo maior rebanho comercial e líder em exportações, o País responde por 15% de toda a carne bovina consumida no mundo. No mercado de frango, é o maior produtor e o maior exportador. Em carne suína, é o quarto maior produtor, com 3,4 milhões de toneladas por ano, e quarto exportador do mundo, atrás da União Européia, dos Estados Unidos e do Canadá.

Países concorrentes reclamam junto à Organização Mundial do Comércio, OMC, que o Brasil pratica preços manipuladamente baixos. Os pecuaristas brasileiros contra-argumentam que o fator-chave é outro: produtividade. Foi esta vantagem competitiva que possibilitou os preços de frango, carne bovina e suína recuarem, entre 2011 e 2016, em média, 25%.

É natural que, em meio à repercussão mundial da operação da Polícia Federal, países concorrentes pressionem, de um lado, os órgãos internacionais sanitários por providências punitivas. Ao mesmo tempo, suas agroindústrias põem as “asinhas de fora” e correm a se apresentar aos clientes cativos do Brasil.

O argumento colocado na mesa da negociação: a “insegurança da carne brasileira”. Neste jogo pesado se acirrará a partir da operação Carne Fraca, mas trata-se de uma disputa cujo fundo protecionista vem de longa data.  

Produtores franceses de frango e pecuaristas irlandeses são, historicamente, ferrenhos inimigos das carnes brasileiras. Mais grave do que recorrer a painéis na Organização Mundial do Comércio, OMC, contra os preços praticados por frigoríficos brasileiros, são os cartazes em restaurantes da Irlanda alertando os freqüentadores para “os perigos” de consumir nosso produto.

 

Dependência européia da carne brasileira e os gordos subsídios

Por mais que apelem nos seus argumentos de venda, um fato que pesa contra a agropecuária européia, e da maioria das demais regiões produtoras, é sua baixa competitividade. A inexistência de terras agricultáveis; aquelas que restaram para o cultivo têm altíssimo valor; e o alto custo da mão-de-obra rural são problemas estruturais crônicos.

O grande aumento, nos últimos anos, de imigrantes refugiados de conflitos étnicos e guerrilhas não trouxe mão-de-obra qualificada para o trabalho na terra – mas acirrou a disputa por emprego, o que gerou descontentamento dos trabalhadores europeus. Tal cenário instigou movimentos nacionalistas, sobretudo na França e na Inglaterra, onde culminou com o “Brexit”.

Some-se a esses fatores os gordos subsídios oficiais da União Européia pagos os pecuaristas inflacionando os preços dos seus produtos. Aí está o cenário completo que inviabiliza a concorrência do Bloco – e de forma semelhante países produtores de outras regiões –, no mercado internacional e, por outro lado, torna a proteína animal brasileira tão cobiçada.

 Aliás, pela própria Europa: o continente é o segundo maior consumidor da carne brasileira, com 21% das nossas exportações. E trata-se de um mercado muito disputado, pois os europeus compram preferencialmente os cortes mais nobres. Aos pecuaristas, restam apelar para outra frente de ataque protecionista: as alegadas barreiras sanitárias.

 

Fronteiras de rastreabilidade e o “boi verde”

Numa manhã do ano de 2000, fazendas da Europa acordaram sob a tenebrosa epidemia da Encefalopatia Espongiforme Bovina (BSE), doença mais conhecida como “vaca louca”. Entre as medidas de segurança, a União Européia determinou que os países exportadores deveriam instaurar sistemas de rastreabilidade do seu rebanho.

A doença da “vaca louca” não existe no Brasil. O rebanho bovino daqui se alimenta de moderna ração animal, mas a ampla maioria se farta mesmo é das culturas de pastagem, em destaque as braquiárias. É o chamado “boi verde”.  Ainda assim, naquele ano, diante da crise da BSE, a UE estendeu a exigência ao Brasil como forma de isonomia aos países europeus. Ou seja, protecionismo justificado.

Suspensões temporárias de comércio de carnes são freqüentes entre países, sempre que há sinal de ameaça à sanidade de animais. A Organização Mundial da Saúde Animal, OIE, sediada em Paris, coordena em nível mundial a elaboração de normas sanitárias e controle de doenças. O órgão mantém atualizada uma lista com doenças que os países devem obrigatoriamente notificar, se ocorrerem casos em seus territórios.

As suspeitas quanto à qualidade apontadas na operação Carne Fraca surpreendeu os especialistas dos próprios países importadores. Afinal, órgãos de vigilância e as grandes empresas clientes mantêm sistemas rígidos de inspeção dos embarques, na origem e no destino do produto. A última suspeição relevante apontada contra um produto brasileiro ocorreu em 2008.

As exigências internacionais aprimoram os sistemas de rastreabilidade. Em 2008, a União Européia vetou exportações de 94 fazendas brasileiras alegando falta de informações sobre vacinação contra a febre aftosa. Já em janeiro último, foi o Ministério da Agricultura brasileiro quem tomou uma medida radical: proibiu visitas de clientes e fornecedores a aviários, agroindústrias e exportadoras ao país, como medida preventiva frente ao surto de influenza, a gripe aviária, que hoje atinge 35 países – todos concorrentes do Brasil no disputado mercado internacional de carne de frango.

 

Após receio inicial, consumo interno não sofre impacto

No mercado interno, oscilações pontuais de preço ocorrerão ainda por algumas semanas. Logo após deflagrada a operação da PF, houve análises sugerindo que os preços das carnes desabariam, pela redução da demanda, com consumidores cancelando o churrasco no final de semana e fugindo das lanchonetes de fast-food. Só que não.

Passado o justificado receio inicial e evidenciado que a ação da Polícia Federal tinha peso muito maior na corrupção, mas foi superdimensionada na divulgação em itens sanitários, o comércio não se ressente de crise no consumo – e, obviamente, por isso nem pensa em baixar preços. Ao contrário: o que se pode aguardar é o aumento em poucos meses.

O motivo das altas não será resultado da operação Carne Fraca – nem medidas pontuais de governos, como o decreto do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em vigor a partir deste sábado, 31, determinando a volta do ICMS sobre o alimento, o que provocará, segundo Pedro Celso Gonçalves, presidente da APAS, que reúne os supermercados, aumento imediato de 6% nos preços.

Os aumentos que certamente virão, em nível nacional, se deverão ao fator sazonal da produção pecuária, principalmente no gado de corte: o período de inverno reduz a produção das culturas de pastagem e influenciam no peso do anima, o que afeta os abates. Mesmo com as modernas tecnologias na produção ração e nutrição animal, que reduziram enormemente os impactos do período de seca na pecuária, as agroindústrias e frigoríficos não conseguem manter o nível de produtividade.

 

Prejuízos à imagem do País no Exterior

É espantosa a capacidade de o Brasil produzir cada vez mais noticias desastrosas contra si próprio no cenário internacional. Apesar da boa vontade dos países desenvolvidos cujos visitantes se encantam com o País, parece que este insiste em continuar oferecendo vexame.

É mais do que compreensível seu receio de desembarcarem no Brasil em meio às notícias de que pelo menos 794 pessoas morreram no País em decorrência das três doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti: dengue, zika vírus e chikungunya.

Apesar de tamanha tragédia, a Abrasco, que reúne profissionais de saúde coletiva, quer impedir o uso do inseticida no combate ao mosquito e, dessa forma, fortalecer sua campanha ideológica que move contra os agroquímicos na agricultura. Especialistas se assombram como disparate da Abrasco; afinal, diante da calamidade do saneamento nas cidades – e enquanto o mosquito transgênico e a vacina contra a dengue são esperanças inovadoras notáveis –, o inseticida continua a mais eficiente arma.

Os ataques diários no País contra sua própria imagem internacional, traduzida para a economia, são episódios como a Operação Carne Fraca. Não é difícil, em situações como esse caso, identificarmos, ali, os responsáveis pelos prejuízos que o escândalo está causando na balança comercial brasileira e à sua imagem internacional.

É fácil enxergarmos as mãos bem visíveis do Estado, com os maus fiscais agropecuários – que são exceções, ressalte-se – e dos parlamentos e partidos que encomendam apaniguados como dirigentes nas esferas regionais. No entanto, Michael Porter, professor na Universidade de Harvard e um dos mais conceituados pensadores modernos da economia e administração pública, coloca o dedo em outra ferida. “As empresas, não os países, competem nos mercados internacionais.”

 

O futuro da alimentação passa pelos campos brasileiros

De acordo com Michael Porter, o setor privado tem a maior parte da responsabilidade no aumento da competitividade de um país, embora o governo possa facilitar o processo. “Muitas vezes, em nome de setores vulneráveis, os grupos comerciais fazem pressão para ter proteção contra a concorrência estrangeira, flexibilizar as normas de defesa da concorrência, conseguir negócios garantidos com agências governamentais de comércio e outras medidas legislativas que reduzem a competitividade”, afirma Porter.

O professor da Harvard parece enviar um recado direto para os gestores do governo de Michel Temer em sua ânsia salvacionista por reformas. “As políticas governamentais não são, por si só, suficientes para garantir a vantagem competitiva de um país”, adverte Michael Porter. “Mas, embora o governo não determine a competitividade, ele desempenha um papel importante de apoio”.

O agronegócio é o mais pujante “vértice do diamante”, novamente citando Michael Porter, da competitividade nacional. Por outro lado, problemas como: a natural imprevisibilidade da produção agropecuária, a histórica deficiência de infraestrutura; a onerosa carga tributária; e uma sanha regulatória que inibe os investimentos em inovações são entraves antigos que requerem políticas e ações estratégicas de governo.

Pensadas para o horizonte longo prazo – o invés do pleito eleitoral de 2018 – e numa visão do desenvolvimento sustentado, tais medidas devem fazer jus à projeção da Organização Mundial para a Agricultura e Alimentação, FAO.

De acordo os especialistas do órgão, nos próximos dez anos o Brasil será decisivo para a segurança alimentar em nível mundial; expandirá sua produção de agrícola em 40% e se tornará o principal player global de alimentos. Em outras palavras, o almejado futuro sustentável na alimentação passa, necessariamente, pelas lavouras, rebanhos e granjas brasileiras.

 

ANTONIO CARLOS MOREIRA é sócio-diretor da Soma Estratégica Comunicação; jornalista especializado em Economia pela Fundação Instituto de Administração, FIA, associada à USP, e editor do livro Ciência da Terra (IAC, 2008).

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