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Relações de trabalho no campo


Marcos Marques de Oliveira
Prestes a completar quarenta e cinco anos de atuação no Brasil, o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) nos oferece mais um belo instrumento para a compreensão dos nossos fenômenos rurais.
Falo de “Emprego e trabalho na agricultura brasileira”, o nono volume da Série Desenvolvimento Rural Sustentável, que reúne textos apresentados no seminário homônimo, realizado em dezembro de 2007, pelo Fórum Permanente de Desenvolvimento Rural Sustentável (Fórum RDS).
Mas o que tem de tão especial nesse número, organizado por Antônio Márcio Buainain e Claudio Salvadori Dedecca, professores do Instituto de Economia da Unicamp, também responsáveis pela completa introdução?
Sem dúvida, além dos méritos individuais de cada capítulo, que revela aspectos relevantes das complexas e diversificadas relações sociais do nosso meio rural, o livro se destaca por recolocar na agenda pública de debates rurais a questão sobre o mercado de trabalho agrícola, que nas últimas duas décadas ficou subsumida pela valorização da discussão sobre a reforma agrária no processo de democratização política e pela emergência da chamada “agricultura familiar” como categoria conceitual estruturante de políticas públicas destinadas ao campo.
E não só. O “esquecimento” do tema também se deve a difusão da noção de que tal mercado é “irrelevante” pelo fato de que aqui no Brasil se repetiria a tendência “universal” de redução da população e emprego direto na agricultura.
Uma extrapolação analítica, segundo Buainaim e Dedecca, indevida e equivocada, especialmente se atentarmos para o grande universo de pessoas que ainda se dedica às atividades agrícolas – que, segundo o tipo de pesquisa consultada, pode variar de 10 a 16 milhões de pessoas.
“Independente da cifra adotada, cujas diferenças decorrem de especificidades metodológicas quanto à mensuração do trabalho e da ocupação, o Brasil convive ainda com uma parcela substantiva de população que depende diretamente da atividade agrícola. Mesmo considerando a cifra de menor monta propiciada pelo Censo Demográfico de 2000 [a outra provém da Pnad – Pesquisa Nacional de Amostra por Domicilio de 2006], nota-se que a população brasileira ocupada nas atividades agrícolas tem dimensão muito superior ao tamanho de mercados de trabalho de países de médio porte populacional”, explicam os organizadores.
Dimensão e heterogeneidade
Resgatada a relevância do setor para o debate sobre o futuro do nosso desenvolvimento, enquanto nação economicamente dinâmica e socialmente justa, seja no campo ou na cidade, o livro se destaca ainda pela extensa e qualitativa análise que traz sobre o complexo e diversificado mercado de trabalho agrícola que se configurou no Brasil dos últimos anos.
Com a colaboração de especialistas de várias áreas e instituições (entre eles estão: Márcio Pochmann, presidente do IPEA – Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada; Fernando Gaiger Silveira, engenheiro agrônomo do Ministério do Desenvolvimento Social; Leila Brito, supervisora técnica do Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos; Laís Abramo, diretora do Escritório da OIT – Organização Internacional do Trabalho no Brasil), a publicação mostra que além da respeitável dimensão, as relações de trabalho no campo brasileiro carregam elevada heterogeneidade em sua estrutura ocupacional, com a marca histórica de uma alta taxa de informalidade e grandes índices de precariedade.
“De fato, a análise do mercado de trabalho agrícola revela um mosaico de relações sociais que transitam no meio rural brasileiro desde o final do século XIX, quando foi extinta a escravidão.
Neste sentido, o Brasil avança no século XXI sem ter equacionado e superado relações do século XX”, constatam Buainain e Dedecca.
Os dados – recolhidos da Pnad 2006 – realmente impressionam: apenas 33,3% dos trabalhadores do campo possuem registro em carteira; 21% não possuem remuneração; 23% se dedicam ao auto-consumo; 85% dos homens e 79,7% das mulheres começam a trabalhar antes dos 14 anos; e, entre outras características, 46,1% dos homens recebem até 1 salário mínimo e 80,7% das mulheres não têm fontes de rendimento.
Ou seja, a remuneração da população masculina é insuficiente para uma vida minimamente digna e o trabalho feminino, escamoteado pela “inatividade” (em 68,3% dos casos), não recebe o devido valor – nem social, nem econômico.
Sob este panorama, não é surpresa que a distribuição demográfica da população do campo – estimada em mais de 31 milhões – denote a pequena participação relativa de jovens e adultos (12,1% e 40,3%, respectivamente), se comparado com a população que vive em zonas urbanas (13,1% e 46,3%, respectivamente).
Nesse contexto bastante hostil para o empreendedorismo e a empregabilidade qualitativa, variáveis de geração de bem-estar em qualquer sociedade, não é de se estranhar que a juventude busque alternativas exógenas de inserção no mundo do trabalho e de reprodução social, cultural e econômica.
Aspectos educacionais
No entanto, há outra razão complementar – que não chega a ser abordada de forma sistemática no livro em questão – para o permanente êxodo do campo para a cidade de levas expressivas de potenciais talentos juvenis.
Refiro-me aqui há alguns aspectos infra-estruturais do sistema de educação destinado ao meio rural, que colaboram para produzir os pífios índices de qualificação, traduzidos na alta taxa de analfabetismo entre jovens de 20 a 24 anos (8,9%, três vezes e meia a mais do que nas zonas urbanas), na grande proporção de pessoas com apenas o ensino fundamental (77%) e nas pequenas proporções de concluintes dos ensinos médio (12,8%) e superior (2%).
Dados do próprio Ministério da Educação (MEC), referentes ao ano de 2005, mostram que a discrepância estrutural entre as escolas urbanas e rurais é abrupta. Enquanto que nas cidades há estabelecimentos de ensino fundamental com razoáveis equipamentos didático-pedagógicos (48,2% com bibliotecas, 19,2% com laboratórios de ciências, 53,8% com quadras de esporte, 40,3% com sala de vídeo, 75,9% com computadores, 43,5% com internet, 99,9% com energia elétrica e 99,8% com tratamento de esgoto), no campo a situação é calamitosa (6,1% com bibliotecas, 0,7% com laboratório de ciências, 5,6% com quadras de esportes, 2,6% com sala de vídeo, 7,4% com computadores, 1,1% com internet, 71,5% com energia elétrica e 84,5% com tratamento de esgoto).
No que tange a formação dos docentes do ensino fundamental, a diferença também é grande. Enquanto que a quase totalidade dos professores das escolas urbanas possuem o ensino superior (87,5%), nos estabelecimentos rurais parcela significativa completou apenas o ensino médio (46,7%).
Por fim, não podemos deixar de destacar a insuficiência de unidades escolares próximas às habitações dos que vivem no campo. Se nos terceiros e quartos ciclos do ensino fundamental, a proporção de crianças rurais que se deslocam para escolas localizadas no meio urbano chega a 62,4%, no ensino médio apenas 8% dos adolescentes e jovens possuem o direito de estudar perto de suas casas.
Sob a justificativa dos “altos custos”, pessoais e financeiros, o Brasil promove, como já bem disse o educador Miguel Arroyo, uma efetiva “política de transporte” e não uma verdadeira “política educacional”.
“O que temos é o esvaziamento dos espaços rurais e um projeto como este não é uma solução, e sim um problema. O ideal é que possamos ter profissionais formados do campo para suprir as necessidades do campo. Não basta formar profissionais nas cidades e levá-los para o meio rural. Ele dá aula e volta pra cidade, não cria vínculos, não constrói uma nova realidade rural. O campo tem que ter sua própria estrutura física e profissional, independente dos grandes centros. Os jovens que vão estudar na cidade são socializados em um meio urbano e depois não querem voltar para o campo. Em minha opinião, isso é estratégia para estimular o êxodo rural em benefício do agronegócio. Hoje, o campo é visto como um meio em extinção. A agricultura familiar, as relações interpessoais, as comunidades indígenas, quilombolas... E a idéia é que estes povos sejam desenraizados dos seus locais de origem para que o agronegócio possa avançar”, alerta Arroyo, em recente entrevista ao www.institutosouzacruz.org.br.
Leitura obrigatória
Apesar dessa aparente “lacuna” (afinal não foi esse o propósito do seminário e do livro), “Emprego e trabalho na agricultura brasileira” se posta como leitura obrigatória aos que se dedicam a projetos alternativos de Educação no Campo – como é o nosso caso, no trabalho de assessoria ao Instituto Souza Cruz e, por conseqüência, à Rede de Fortalecimento Institucional do Jovem Rural. 
Os dados e as análises realizados pelos especialistas fornecem pistas interessantes para se entender melhor o nosso meio de atuação, destacando uma dimensão (as questões relativas ao mundo do trabalho agrícola) que ficou subsumida pelos movimentos de luta pela terra e de fortalecimento da chamada agricultura familiar – movimentos importantes, mas que não exaurem a heterogeneidade das relações do complexo e diversificado campo brasileiro.
Suprindo essa lacuna, como era o real propósito do projeto, o IICA mais uma vez, através de relevantes parcerias, demonstra seu papel de relevância para a agricultura brasileira, cumprindo seu fiel objetivo de ajudar os países associados a alcançar suas metas de desenvolvimento agrícola e de melhoria do bem-estar rural, com ações de atividades que tenham efeito multiplicador e duradouro.
Vida longa e frutífera à instituição e a todos que participam dessa empreitada, eis o nosso desejo em forma de agradecimento.

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