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A ilusão dos perímetros irrigados

Sistema foi vendido como saída para resolver problemas de seca no nordeste


Vendidos por sucessivos governos como a saída para resolver os problemas da seca no Nordeste desde a década de 70, os perímetros irrigados, áreas loteadas entre agricultores com estrutura de irrigação pública, figuram atualmente como um grande fracasso. Era ilusão? A incompetência da gestão pública levou os grandes projetos ao abismo? Independente dos motivos, a estruturação de cinco perímetros irrigados em território potiguar não conseguiu, salvo exceções, libertar o homem do campo da dependência dos caprichos do clima nordestino.

Resultados pífios em quarenta anos

Mas voltemos um pouco no tempo. Estamos em plena década de 80 e o governador de plantão discursa para uma ingênua platéia. Diz: “Os perímetros irrigados são um marco no desenvolvimento do Rio Grande do Norte. Iremos fazer uma revolução na agricultura”. Antes de encerrar o discurso, a promessa: “Até o fim da década teremos 35 mil hectares de terras irrigadas no Estado”. Retornando ao ano de 2010 temos pouco mais de seis mil hectares de perímetros públicos irrigados – juntando com áreas privadas mal se chega a 20 mil hectares. Além disso, não houve revolução nenhuma, excetuando-se algumas áreas entre o Vale do Açu e Mossoró, capitaneadas por prósperas empresas. Nada de estruturas públicas.

Eis o tamanho do impasse. Não bastou fornecer água, sementes e equipamento para alguns milhares de colonos. Com o tempo, a estrutura disponível para que agricultores produzissem o ano inteiro, sem depender do regime irregular de chuvas, foi descaracterizada. O sonho dizia do cultivo ininterrupto de frutas tropicais para negociar com regiões distantes, em substituição ao decadente mercado de algodão, dizimado pelo bicudo. A realidade mostrou agricultores endividados, sem apoio, vendendo suas terras ou dependendo de aposentadoria. Esse é o atual panorama.

A instalação dos perímetros irrigados começou no fim da década de 70, por iniciativa do governo militar. A teoria, preservada até hoje, era tornar disponível água através da construção de açudes públicos e de um sistema de canais e irrigação. A água seria levada dos açudes até os lotes de agricultores pelos canais principais. Esses últimos passariam pelas terras, onde canais secundários seriam responsáveis por abastecer o lote. As terras foram distribuídas para agricultores e suas famílias – poucas empresas foram atendidas – e uma associação de colonos seria responsável por gerir as áreas comuns e realizar a manutenção da estrutura.

Num primeiro momento foram criados cinco perímetros no Rio Grande do Norte: um em Pau dos Ferros, dois em Caicó e um em Cruzeta. Já no fim da década de 80, foi criado o perímetro irrigado do Baixo-Açu, compreendendo os municípios de Alto do Rodrigues, Afonso Bezerra e Ipanguaçu. Dos cinco, todos criados pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas, apenas o do Baixo-Açu e o de Cruzeta ainda guardam semelhanças com o projeto inicial. Esses produzem frutas, hortaliças, comercializam os produtos com estados do Nordeste e tentam expandir a seus negócios.

O restante foi engolido pelo tempo. Os altos custos com energia, para bancar o funcionamento das bombas que puxam água dos açudes até as comunidades, endividaram agricultores e prejudicaram a continuidade da produção. A assistência técnica, tão prometida pelo governo quando do início dos projetos, foi interrompida, abandonando os colonos à própria sorte. O resultado é o declínio das culturas tradicionalmente utilizadas nos projetos, como banana e feijão, e a volta da improdutividade das terras.

A despeito da franca decadência de alguns perímetros, até porque a situação potiguar se repete nos outros estados do Nordeste que também receberam os projetos, o Governo Federal tenta, desde 2003, retomar a irrigação como motor de desenvolvimento nos estados nordestinos, após atravessar toda a década de 90 praticamente estagnado. No próprio Rio Grande do Norte, o DNOCS irá licitar dois novos perímetros: em Umarizal e Apodi. Estados como Ceará e Piauí receberam cinco perímetros, com um investimento de R$ 482 milhões. Em terras potiguares, os novos perímetros já suscitam discussões, para que antigos erros e modelos ultrapassados não sejam reproduzidos em pleno século XXI.

Terras improditivas em quantidade

O cenário da comunidade agrícola, encravada no coração do Seridó, pouco lembra o passado de sucesso no cultivo de frutas tropicais, a não ser pelas máquinas enferrujadas e as ruínas de uma fábrica de doces, abandonada na parte mais alta do lote. Os moradores, acostumados desde a infância a lidar com o cultivo da terra, agora esperam pacientemente o passar do tempo, aconchegados nas varandas das casas antigas. Esta ainda é uma comunidade de agricultores. Mas de agricultores aposentados.

Na comunidade do Sabugi, perímetro irrigado desde 1977, praticamente não há produção. Desde o início da década de 90, quando o açude público sabugi secou, o cultivo a partir da irrigação foi desmantelado. Novamente, a comunidade só podia plantar quando chovesse. Por essa época, os 63 colonos produziam feijão, algodão, banana, goiaba, entre outros itens. Além de vender as frutas no mercado nordestino, os agricultores foram beneficiados com uma fábrica de doces, totalmente equipada. Triste coincidência: as obras da fábrica terminaram logo quando o açude secou e, até hoje, mais de 20 anos depois, a estrutura nunca foi usada.

Some-se a isso as dificuldades em pagar a conta de energia e a falta de assistência técnica. Dessa maneira é fácil explicar a profusão de terras praticamente improdutivas, com exceção de alguns hectares onde poucos colonos plantam cana-de-açúcar, e a estrutura danificada, inútil, de boa parte dos canais de irrigação. A situação se repete, com pequenas diferenças, em outros dois perímetros do Estado. A descaracterização dos projetos de perímetros irrigados segue um padrão: agricultores endividados, terras subutilizadas, desperdício de dinheiro público.

No Perímetro do Itans, também em Caicó, dois antigos colonos tiveram de recorrer a uma alternativa para viabilizar financeiramente o uso da terra. Sem conseguir plantar, a criação de peixes em cativeiro mostrou-se mais lucrativa. Agora, as terras onde antes robustas bananeiras abasteciam as feiras livres do Rio Grande do Norte e estados vizinhos estão tanques recheados de tilápias e tambaquis. Era isso ou se desfazer da terra, como tantos fizeram. O perímetro do Itans viu seus donos originais venderem os terrenos, adquiridos por criadores de gado à procura de pasto fácil para engordar seus negócios. Essa parte do processo ajudou a sepultar a incipiente fruticultura em terras caicoenses. E assim a comunidade se desmobilizou. Agripino Ribeiro, presidente da Associação dos Colonos Irrigantes e Agropecuarista do Perímetro Irrigado Itans – ACIAP.

Enquanto no Sabugi e no Itans a produção, da forma como foi pensada originalmente, praticamente foi extinta, em Pau dos Ferros os agricultores, a partir da compra de novos equipamentos por parte do DNOCS, voltaram a trabalhar na terra. O equipamento antigo era um empecilho, agora resolvido. Mas isso não é suficente. Os agricultores continuam produzindo da mesma forma de antes, apenas para subsistência. Planta-se feijão verde e forragem para o gado. Quando o preço do feijão verde está atrativo, é possível vender para cidades vizinhas. Quando não, a saída dos agricultores é sobreviver do comércio de leite, abastecido com o sorgo plantado nos lotes do perímetro.

No mais, programas sociais, como o Bolsa Família são largamente utilizados pelos moradores desses perímetros. Há um agravante: as pessoas beneficiadas com vultosos investimentos do Governo Federal para conseguir uma alternativa no próprio sustento acabam voltando a precisar do apoio do próprio Governo, ou seja, mantém-se a dependência. O sofrimento secular continua, ao mesmo tempo em que o dinheiro público escorre pelo ralo e relações políticas de assistencialismo se perpetuam.

A ideia original, com os perímetros irrigados, era modernizar a agricultura e dar a oportunidade para pequenos produtores? Por que não deu certo?

Primeiro, a ideia de “modernização da agricultura” veio de uma época, os anos 1960 a 1970/1980, onde havia uma crença muito forte de que as formas tradicionais rurais de exploração (entre elas os pequenos agricultores e os latifundiários de características ainda feudais) não se faziam adequadas para a promoção do capitalismo que geraria o desenvolvimento econômico e enquadraria o país como economia avançada. Para os planejadores e técnicos do Estado, aqui especialmente os do DNOCS, para atuar em um ambiente de irrigação os produtores teriam que apresentar como requisitos um aporte elevado de capital financeiro e um conhecimento técnico compatível com o que eles (os técnicos) julgavam ser o melhor para este ambiente. E mesmo os movimentos sociais defensores dos pequenos tendo conquistado uma parcela dos lotes, estes pequenos produtores foram abandonados à própria sorte sem o direcionamento de políticas públicas de apoio à produção, organização e comercialização.

No Vale do Açu vemos a presença de empresas dentro do perímetro. Além disso, nas terras de “colonos” percebemos que os donos mal freqüentam a terra, deixando o trabalho para trabalhadores rurais assalariados. Isso não distorce a ideia de perímetro irrigado público?

Grande parte dos “colonos”, os pequenos produtores, desistiu do Perímetro do Baixo-Açu ainda em 1994 logo após ter sido inaugurado. Este perímetro ficou sem operação produtiva até 1998 e quase foi extinto. Na tentativa de sua reativação em 1998 os lotes abandonados foram sendo ocupados por produtores de outros estados, especialmente da Paraíba e Pernambuco. E a forma de exploração desses produtores “de fora” passou a caracterizar o perímetro não como um ambiente de agricultura familiar diversificada, mas de um ambiente de exploração empresarial, mesmo explorando áreas de 8,16 hectares. E o que deveria ser um ambiente dinâmico, adequado para o desenvolvimento de uma agricultura moderna passou a se definir como um ambiente de exploração homogênea (apenas banana) e dependente ao extremo de recursos do Estado. Apenas o Ministério da Integração Nacional injetou a partir de 2005 mais de R$10 milhões para que, novamente, o perímetro não fechasse. Além disso, quase todos os proprietários não moram nos lotes, tornando o perímetro um deserto humano e um sistema de produção em que impera relações de trabalho atrasadas, inclusive com a identificação de trabalho escravo pelo Ministério do Trabalho no início desta década.

Eleger a irrigação, através da criação e expansão dos perímetros, como cura para o mal da seca e do atraso no campo era um raciocínio equivocado? Ou simplesmente foi a política de expansão que não foi levada adiante com êxito?

As duas coisas. Tanto a forma de eleger a irrigação como “redenção” para o semiárido brasileiro partiu de um raciocínio equivocado, como a política de expansão não teve êxito. Com relação à primeira, o raciocínio passava a desprezar totalmente a capacidade do agricultor no nível local, bem como da agricultura tradicional. E para se ter uma ideia, a inspiração no modelo americano da Califórnia se tornou uma falsa crença.

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