Quem dá ciência dessas coisas é o doutor Paulo Bezerra que também tem queda e gosto por futebol, tanto assim que vê os jogos da África do Sul nos lajedos de sua Fazenda Pinturas, acariciado pela brisa que passa pelos pés de trapiás, aqui e acolá é sacudido pelas lembranças do tempo que jogava suas peladas no Ginásio Diocesano de Caicó, estimulado pelo Monsenhor Walfredo Gurgel. Esta sua carta é datada do dia 21 “de São João de 2010”. Aprenda, pois, caro leitor, tudo sobre a arte de plantar batatas, que não tem nada a ver com aquelas de Machado de Assis. E tem.
“Ao dar esta escrita por começada, cabra velho, eu, que não fui criado que nem batata na areia do rio, me arrescordei do que um repentista desembuchou depois de, por estirado tempo, ouvir as multiplicadas loas com as quais um vendedor anunciava a bondade das suas batatas postas à venda no caçuá. Foi assim: “Batata, batata doce / Batata que o povo gosta! / Um quilo dessa batata / Dá uns dez quilos de bosta”.
Pois ela, pelo que me disseram, vem do Peru derna tempos muito distantes, coisa de uns 7 000 anos, havendo hoje uma variedade avantajada originária de uma só planta. E é de lá que vem a nossa batata-doce. Como-se-á em todos os lugares desse mundo e de múltiplas maneiras: cozida – acompanhada ou só -; assada dentro do chão como fazia o caboclo brabo; feito doce etc. e tal. É rica em carboidratos, em vitamina A e C e outras do complexo B. De quebra, a casca vai para a lata do porco ou para o terreiro das galinhas. Pois bem, tanto serve ao rico quanto ao pobre e ao bicho bruto e, nem só o tubérculo, mas a rama que é boa ração animal. Fala-se também em suas folhas verdes cozidas e temperadas como alimento humano.
Deixe eu lhe dizer, amigo velho, que o plantio dela está escasso nos sertões de dentro. O cidadão se sujeita a comprar na venda tirando do seu ganho, não só ela, mas o tomate, o limão, o coentro e outras tantas coisas, a ter o trabalho de plantar, de cuidar e de colher. A ação paternalista dos governos vai induzindo à lei do menor esforço, amofinando o homem, amordaçando a sua iniciativa criadora, o que parece ser um caminho sem volta. Ao sujeito que trabalha, se lhe importuna conversa fiada de um desocupado, para ele se volta com desdém, a lhe dizer: “Homem, vá plantar batata que é o melhor que você faz”. Vamos nós então, pelo menos no papel, que tudo aguenta, de enxada na mão, plantar batata nas vazantes dos rios e dos açudes. Aliás, batata não se planta. Planta-se a rama dela.
A enxada mais maneira é a de 1 libra ou seja 456 gramas, digamos ½ quilo. Tomando a libra por unidade vem a de 2, a de 2 ½, a de 3 e a de 3 ½, portanto para todos os gostos e fins, desde o cabra esmorecido no serviço até o mais disposto, aquele com muque no calango do braço chega rasga a manga da camisa. Encabar enxada para cavar cova é diferente de pôr cabo em enxada para limpar mato. A primeira é mais em pé e a outra mais deitada, como requer o serviço. No cabo, às vezes de louro, abre-se a serrote uma fenda na extremidade que recebe a enxada para nela meter-se a mecha, sob pressão, o que sustentará o conjunto madeira/ferro. Quando o meu irmão Gonzaga largou os estudos no Recife, ao chegar de volta nosso pai mexia um queijo de manteiga e ao vê-lo se encher de espanto. Ciente da decisão do filho mostrou-lhe o caminho: “Pegue minha enxada no quarto dos ferros e vá pro roçado limpar mato, onde estão os trabalhadores. Agora é a sua caneta”. Mas o cabra entesourou e, mesmo arrependido, nunca mais quis saber de livro.
A cova a ser aberta reclama obra de 2 x 2 palmos de lado e 2 de fundura, ficando a 2 palmos uma da outra, em linha reta e, entre as carreiras paralelas depende do que vai ser plantado no meio, seja melancia, feijão, jerimum ou milho. Consoante a qualidade do solo que carece de ser úmido e fértil, a cova é estrumada com adubo de curral pondo-se, carecendo, veneno para impedir que doenças das ramas, feito o tamanjuá desçam às raízes. A terra cavada volta ao lugar de origem no feitio de um cone truncado, agora mais oxigenada e volumosa, e solta, e fofa, a fim de favorecer o crescimento da batata. No topo do cone a rama e enfiada, dois a mais ramos e levados por vareta com forquilha na ponta. Daí o primeiro xaxo com a rama já pegada, para limpar o mato e fofar a terra, e outro mais quando a rama vai fechando, cobrindo o chão. 100 dias após o plantio, um pouco mais ou menos, chega a fase da arranca. Outro sistema de plantar é um lerão. A área ocupada por essa cultura, já não se mede em braça, mas antes em covas, covas de rama: 100, 200, 500, um milheiro delas.
No sítio Vaca Brava, adquirida por meu pais aos mesmos parentes a quem comprou as Pinturas em 1934, um açude raso completo de massapé produzia batata até para alimentação de boi em regime de engorda. Tropa de jumentos – Estrela, Faceiro, Mourão e Ligeiro – fazia o transporte em cargas de urus como Branco fazia com a sua tropa – ele, um negro retinto, trabalhador e honrado. Era uma boa tirada de chão. Depois de lavada, cortava-se em lata de querosene – a ração do dia – a ser servida em cocho, salpicada com sal. De uma junta de bois assim tratada – Pernambuco e Ceará - que do serviço do açude de Margarida voltou afrontada, semelhante na cor, na caixa e nas armas, no apurou pesou 25@ e o outro 7 quilos a mais.
O apurado da venda das batatas era receita da minha mãe mediante percentual pago a Manoelzinho da Bodega (Manoel Bezerra da Silva) que também vendia as bananas das Pinturas. Manoel dos Cocos (Manoel Batista de Araújo, 1910-1998), cujo perfil o seu filho Geraldo Batista tão bem traçou no seu livro “Lembranças”, encheu d’água os potes da casa da rua – para onde fomos tangidos pela seca -, de 26 de setembro de 1941 a 12 de novembro de 1942, num total de 1.045 cargas, ao preço unitário de $250, $300, $400 e 1$000, ele, um freguês das batatas vendidas em cuia e cuidadosamente arrumadas fazendo coculo. Empaiolada, depois de algum tempo a batata olha soltando a rama.
De tanto espiar o dia-a-dia, o sertanejo vai criando a suas imagens tradutoras de uma realidade como a expressão – “conversar carga d’água” – no sentido de jogar conversa fora, matar o tempo. Também, quando um cidadão quer depreciar o outro sapeca: “Homem, aquilo é mais fraco do que caldo de batata”. E por aí vai...
Aqui fico a tanger a vida na certeza de que “cada segundo a mais é um segundo a menos”, não é mesmo, caboclo?, e na espera do dia de manhã, que não me falte.
Paulo Bezerra.”
O poeta das batatas
Os versos citados pelo doutor Paulo Balá são do poeta Renato Caldas, da nobreza do Assu. Foram registrados por Oswaldo Lamartine de Faria no seu livro “Uns Fesceninos”, onde ele conta: “Domingo de feira. O sol de derreter os miolos e fazer desenhar sombras até com a alma da gente. O poeta especulava pela feira quando o vendedor de batata-doce lhe pediu: ‘- Seu Renato, faça uns versos mode vê se eu vendo mió essas batata’. E a resposta veio em-cima-da-bucha.
