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Projeto de lei que prevê porte rural de armas pode elevar mortes no campo, alertam grupos

Agentes policiais patrulham fazenda Santa Lucia, onde um ativistas sem terra foram mortos no município de Pau D'Arco, no Estado do Pará


O número de mortes no campo em conflitos agrários neste ano supera o total do ano passado, deixando 64 pessoas mortas até outubro, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, um número pode crescer ainda mais, alertam organizações de direitos humanos.

A expectativa de agravamento se deve a um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e prevê o porte de arma para produtores e trabalhadores rurais maiores de 21 anos.

“Você vai ter mão armada legalizada do outro lado e do lado de cá, a defesa é como se pode, com a cara e a coragem”, disse o coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra, Ruben Siqueira. Segundo a entidade, que monitora conflitos agrários no Brasil, em 2016 foram 61 mortes no campo.

O projeto, de autoria do deputado Afonso Hamm (PP-RS), foi aprovado na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara no início de outubro, com alterações, e agora aguarda análise pelas Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e de Constituição e Justiça.

A justificativa por trás do projeto, segundo o texto original, seria a de dar “direito aos proprietários rurais e aos trabalhadores rurais de protegerem sua vida e a de seus entes caros, assim como de sua propriedade e bens”.

A mesma proteção é apontada como justificativa pelo relator do texto na Comissão de Agricultura, deputado Alberto Fraga (DEM-DF).

“Hoje o homem do campo está totalmente desprovido de qualquer defesa, já que lá, não existe a possibilidade de você ligar para o 190 e esperar que a polícia apareça”, afirmou.

Segundo Fraga, os roubos e assaltos no campo, especialmente de maquinários agrícolas e defensivos, vem aumentando nos últimos anos.

Mas a tese de que uma arma de fogo funciona como instrumento de defesa é questionada.

“Já existe muito conhecimento em relação à não-eficácia de uma arma de fogo como instrumento de defesa, ou seja, as pessoas têm a imagem de que vão comprar uma arma para se defender e o que acaba acontecendo é que geralmente a pessoa é agredida ou acaba sendo morta e no mínimo tem sua arma roubada”, afirmou Felipe Angelli, assessor do Instituto Sou da Paz.

O projeto de lei determina exigências muito brandas para conceder a licença, segundo o Instituto Sou da Paz. Basta, por exemplo, levar duas testemunhas para provar que o interessado mora ou trabalha no campo.

“O problema do relatório é que ele diz, primeiro, que para provar que você mora no campo, ou é trabalhador rural, ou seja, você nem precisa morar, você pode trabalhar numa instituição que se diz rural, que também é uma coisa difícil de definir, e para provar isso, você precisa apenas de duas testemunhas”, disse Angelli.

Outro ponto crítico, segundo esses grupos, é que uma declaração de antecedentes criminais também poderá ser substituída por uma declaração da autoridade policial local, o que pode ser problemático em alguns locais.

“Esse atestado por essas autoridades dá uma aparência de legalidade para algo que na prática não funciona. Não diz o que o atestado comprovaria. É uma licença para qualquer um se armar e fazer o que quiser com sua arma”, disse Siqueira, da CPT.

Os conflitos agrários decorrem da disputa por terras públicas e são um problema que já dura décadas. As disputas geralmente se dão entre proprietários de terras e grandes empresas contra pequenos produtores rurais, assentamentos, movimentos por moradia, e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas.

Em alguns casos, segundo a Comissão Pastoral da Terra, as disputas ocorrem mesmo quando a posse da terra já foi concedida pela Justiça a um assentamento, por exemplo. Em outros, afirmou a entidade, proprietários, grileiros e posseiros tentam retomar um território que sequer é deles, que ainda pertence à União. Isso é feito à força, muitas vezes por pistoleiros e milícias contratados.

“Essa medida vai praticamente legalizar uma situação que já vem se configurando no campo, que são as milícias armadas em defesa do latifúndio e do agronegócio”, disse Siqueira.

Em outros casos, as mortes acontecem em enfrentamentos contra forças policiais da região, como o ocorrido no chamado Massacre de Pau d‘Arco, no Estado do Pará, que vitimou 10 trabalhadores rurais em maio deste ano.

A falta de eficiência da investigação policial, segundo Siqueira, é também um dos fatores que permitem a perpetuação da prática.

“O eixo disso é a impunidade e a produção e reprodução da impunidade”, disse ele, apontando que o problema está na apuração.

“Se a base do processo judicial para apurar responsabilidades de um crime contra um camponês é um inquérito, ele já começa falho, não vai dar em nada”, disse Siqueira, apontando que, nessas localidades, é comum que autoridades policiais estejam vinculadas a grupos envolvidos nesses tipos de crimes.

“Quando consegue dar, você tem quando muito, a punição dos executores e não dos mandantes”, afirmou.

Um conflito por terra se configura quando há a ameaça ou defesa de um direito –à terra, à água, à produção ou ao trabalho, explicou Siqueira.

Questionado sobre a preocupação de entidades de direitos humanos com a possibilidade de que a lei, caso aprovada, venha a aumentar os conflitos no campo, o deputado Alberto Fraga disse: “é uma aberração esse pensamento dos direitos humanos”.

O parlamentar disse ainda que a chance de aprovação da proposta é de “100 por cento”.

“E os direitos humanos que fiquem esperneando, falando com dados inconsistentes, com medidas que a gente sabe que não são verdadeiras, não estamos querendo aqui criar conflito entre o campo”, disse Fraga.
HISTÓRICO

Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, 220 pessoas morreram vítimas de 46 massacres em nove Estados brasileiros ao longo dos últimos 32 anos.

“Muitas mortes aconteceram e estão acontecendo no campo na região do Cone Sul nesses conflitos por terra e vão acontecer mais”, disse Adilson Machado, morador e liderança do Projeto Águas Claras.

O assentamento onde vive Adilson fica dentro da área de Corumbiara (RO), palco de um dos maiores massacres agrários do Brasil.

Em 1995, oito trabalhadores e dois policiais foram mortos e mais de 350 camponeses ficaram gravemente feridos em uma negociação mal-sucedida entre policiais e centenas de sem-terra que ocupavam uma fazenda na região. Além disso,

Com a perspectiva de uma legislação mais branda e um controle menos rígido sobre o armamento, o clima é de preocupação e a expectativa é de acirramento das tensões.

“Nós estamos muito preocupados se aprovar isso, pois mesmo com desarmamento tem morrido muita gente no campo”, disse Machado.

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