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Soja pode avançar mais de 18 milhões de hectares pelo Cerrado

Estudo aponta que aproveitando áreas de pastagens a região pode ampliar produção de soja sem desmatar


Foto: Erik Lopes

De uma lado uma produção de soja na casa de 122 milhões de toneladas na safra 19/20, mesmo com a estiagem no Sul um avanço de 6,1% frente a safra passada, de acordo com a Conab. De outro a necessidade de mais terra produtiva em contraponto a uma produção que não fere a biodiversidade e não desmata. É possível?

Um estudo conduzido pela organização ambiental The Nature Conservancy (TNC), que atua há 30 anos no Brasil com o objetivo de compatibilizar o desenvolvimento econômico e social com a conservação dos ecossistemas, mostra que há uma área de 18,5 milhões de hectares de pastagens subutilizadas no Cerrado, com potencial agrícola. O total é suficiente para ampliar a produção da oleaginosa por mais dez anos sem desmatar nada. Hoje a necessidade seria de aproximadamente 7,3 milhões de hectares para a expansão na década. 

Os dados ajudam a indicar uma alternativa para o problema do desmatamento avaliado no estudo: 38% da produção (cerca de 3,65 milhões de hectares) de soja colhida no Cerrado no ciclo 2016/2017 estava em terras cobertas por vegetação nativa em 1999, enquanto a área de produção do grão aumentou no total 9,6 milhões hectares - ou 128% - entre 2000 e 2017.

Mais produção, maior valor agregado

O relatório aponta que a utilização de instrumentos financeiros podem ser usados para melhorar os retornos da produção de soja realizada em pastagens arrendadas ou adquiridas. Produtos financeiros, como financiamentos com prazos mais longos e custos mais interessantes para os produtores, podem ajudar a mudar a forma da expansão em favor dos modelos sem conversão de vegetação nativa e servir como complementos à crescente demanda do mercado por produtos mais sustentáveis. O modelo, então, estimula o financiamento para a aquisição e conversão de pastagens, em detrimento da aquisição de áreas preservadas.

Além disso a ideia é potencializar a produção brasileira e gerar produtos de valor sustentável, de maior valor agregado, preservando o meio ambiente sem interferir na produção agrícola. O estudo conclui ainda que a expansão da soja em terras de pasto já existentes possui menor custo e maior produtividade do que a conversão de áreas de vegetação nativa em cultivo - já que é três vezes mais rápido atingir rendimentos máximos de colheitas em terras de pastagens já convertidas. Ainda aponta uma combinação de ações para apoiar o desenvolvimento da pecuária, utilizando as áreas que não são ideais para a produção de grãos. 

 A expansão no Cerrado

A área do Cerrado é maior do que a soma dos territórios da Alemanha, Espanha, Itália, França e Reino Unido, ou quase cinco vezes o tamanho da Califórnia. É também uma das principais regiões agrícolas do mundo, considerada o centro da produção de alimentos nas últimas décadas. 

No Cerrado, epicentro da expansão da soja no Brasil, em uma parte do bioma, na área agrícola conhecida como Matopiba, que engloba parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, mais de 80% da expansão da soja nas últimas duas décadas ocorreu sobre a vegetação nativa. Ainda, segundo o estudo, esta região é a que abriga os remanescentes mais significativos do Cerrado nativo em terras privadas adequadas para a produção de soja, reunindo 45% da reserva legal excedente do Cerrado, o que representa 4,5 milhões de hectares. 

Conversamos com o especialista em Negócios e Investimentos da The Nature Conservancy (TNC) no Brasil, José Otavio Passos, sobre mais alguns aspectos deste estudo.

Portal Agrolink: como foi conduzido este estudo?
José Otavio:
o estudo, feito em parceria com a Agroicone, focou principalmente na soja e na carne, já que são as principais cadeias produtivas do Cerrado e as que geraram maior desmatamento nas últimas décadas (2000 a 2017). Para dar uma dimensão de grandeza, a área de soja nesses dez anos expandiu 9,6 milhões de hectares no Cerrado, das quais 3,65 milhões (38%) estão em áreas que eram vegetação nativa em 2000.
 
No estudo focamos em três componentes principais: 1. Análise da dinâmica de uso do solo no Cerrado e projeção da expansão da soja nesse bioma até 2030; 2. Avaliação das condições econômico-financeiras dos modelos de expansão, sob a ótica dos produtores; e 3. Simulação de incentivos e mecanismos financeiros que possam promover a expansão da produção de soja sem desmatamento.
 
Na primeira parte utilizamos principalmente dados de sensoriamento remoto utilizando informações processadas pela Agrosatélite e organizadas na iniciativa Mapbiomas (coleção 3.1). Nessa análise chegamos à conclusão de que há uma ampla área já aberta (ou seja, sem vegetação nativa), principalmente de pastagens de baixa intensidade produtiva que são aptas para agricultura (18,5 milhões de hectares das quais 7 milhões degradadas), que poderiam absorver a expansão prevista para a soja nos próximos dez anos (5,2 milhões de hectares no Cerrado segundo estimativa da CONAB, 2018). Isso significa que há área disponível tanto para produção das grandes cadeias, mas também respeitando o espaço ocupado por comunidades tradicionais e agricultura familiar por exemplo. É possível otimizar o uso do solo para que todos sejam beneficiados, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista ambiental.
 
Além disso, foram realizadas entrevistas com atores das cadeias produtivas, o que ajudou a entender o perfil dos produtores, bem como fatores que afetam o retorno financeiro. Dentre os fatores foram identificados três fundamentais que ajudam a explicar os modelos de expansão da soja (com ou sem desmatamento): a) preço da terra; b) custo de conversão; e c) evolução da produtividade após a conversão da área para soja. A partir das variáveis econômicas foram realizadas modelagens financeiras, em que estimamos o custo de oportunidade de manter os habitats naturais preservados, e comparamos os distintos modelos de expansão por meio dos fluxos de caixa do produtor.
 
Avaliando o retorno financeiro e a lucratividade concluímos que é possível estimular a produção sustentável, sem desmatamento adicional, por meio de incentivos, particularmente utilizando linhas de financiamento com prazos mais longos e condições mais atrativas. Tanto uma linha privada de longo prazo para aquisição de pastagens quanto às condições do Programa ABC são exemplos de mecanismos promissores que devem ser aprimorados e intensificados para ajudar a preservar a vegetação nativa no futuro, aumentando a produtividade no campo e dirigindo a expansão da agricultura para áreas já abertas.
 
 Portal Agrolink: como o produtor poderia dispor dessa área ?
José Otavio:
no estudo simulamos duas situações principais, que, hoje em dia, já representam a principal forma de expansão da soja no Cerrado: aquisição de áreas de pastagem e arrendamento de pastagens.
 
No primeiro caso, entendemos que há um custo inicial mais alto e que pode variar muito de acordo com a região, disponibilidade de infraestrutura e qualidade da pastagem adquirida, entre outros fatores. Assim, concluímos que uma linha de crédito que possa ser utilizada para aquisição de área de pastagem, com prazos mais longos que os tradicionais, seria muito importante para evitar que esse mesmo produtor opte por expandir em áreas com vegetação nativa.
 
No segundo, simulamos contratos de médio e longo prazo nos quais o agricultor paga ao pecuarista um valor de arrendamento, prática muito difundida principalmente no centro-oeste brasileiro. Nossa análise também avaliou a ótica do pecuarista e chegamos à conclusão de que o arrendamento de parte da área e utilização do valor recebido para intensificar a produção na pastagem remanescente é bastante rentável. Nesses contratos de arrendamento, um ponto fundamental é que devem sempre estar previstas a adoção de boas práticas agrícolas, para manutenção da qualidade do solo em longo prazo – e não apenas durante a vigência do contrato, de forma que essa expansão não gere mais degradação ao solo.
 
Além desses mecanismos, é importante mencionar que seria muito importante pensar em um seguro rural mais amplo, com condições mais atrativas ao produtor no caso dessa expansão em pastagem, particularmente quando ela se dá sobre pastagens degradadas. Entendemos que a melhor utilização do solo e dos recursos naturais, e o potencial de redução da emissão de gases do efeito estufa (ou até absorção de carbono por pastagens bem cuidadas ou pela recuperação e conversão para soja) justificaria um incentivo ao produtor que faça esta opção.
 
Portal Agrolink: haveria custos para intervenção neste tipo de solo, correção, preparo....
José Otavio:
sim. Nas nossas simulações consideramos um custo alto para que pudéssemos ser mais conservadores com os resultados. Para avaliar a conversão de pastagens para a produção de soja utilizamos uma estimativa de custos entre R$ 2.800 e R$ 3.200 por hectare. Esse valor varia muito de região para região, por tipo de solo, estado da pastagem entre outros fatores, sendo que dados do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (IMEA) indicam que esse custo pode ser bem menor, aproximadamente R$ 1.400 por hectare. O que ajuda a explicar por que a conversão de pastagens para soja já é o modelo predominante de expansão desse cultivo no estado do Mato Grosso.
 
Já na combinação entre soja e pecuária, em um modelo de integração lavoura-pecuária (ILP), embora os investimentos sejam mais expressivos nos primeiros e demandam maior sofisticação técnica e assistência ao produtor, os resultados em médio e longo prazo demonstram a viabilidade do modelo. Há inúmeros estudos e exemplos práticos demonstrando o quanto esses modelos aumentam tanto a produtividade da soja quanto da pecuária, além de trazer uma série de benefícios ambientais, como a melhoria do solo. Entendemos que esse modelo, além de ser mais produtivo e ambientalmente mais sustentável, é também a forma mais rentável de produzir, gerando não somente maiores retornos financeiros, como também maior estabilidade na renda do produtor e maior resiliência a eventos climáticos.
 
Portal Agrolink: do ponto de vista ambiental isso poderia reduzir a crise campo/urbano?
José Otavio:
se a crise a que se refere tem relação com a falta de perspectiva econômica no campo, que faz com que produtores possam desistir e ir para o ambiente urbano, certamente novos incentivos econômicos que beneficiam aspectos socioambientais e com condições adequadas às demandas do produtor podem reduzir seus riscos, consequentemente, melhorando sua qualidade de vida no campo.
 
Portal Agrolink:  poderia se tornar uma espécie de nova fronteira agrícola e gerar corrida de produtores por terra disponível?
José Otavio:
as fronteiras agrícolas no Brasil são conhecidas e até hoje são pautadas pela lógica tradicionalista de conversão de vegetação nativa para abertura de novos plantios. O que esse estudo traz é uma nova lógica de olhar os pastos improdutivos, que são abandonados, como alternativas interessantes do ponto de vista econômico e produtivo. Sabemos também que as variações climáticas reduzem a produtividade da soja. Análise feita no projeto AgroServ, liderado por pesquisadores da Tufts University, nos Estados Unidos, concluiu que a retirada da vegetação do Cerrado faz com que os eventos de calor extremo sejam mais frequentes ou mais intensos na região, causando quedas em produtividade, o que gera prejuízos ao produtor. Portanto, não acredito que haverá corrida para plantios em áreas já abertas, mas sim a revalorização de regiões inteiras que estavam com a agropecuária de baixíssima produtividade por muitos anos. Provavelmente haverá uma nova perspectiva de valorização de terras que hoje são subestimadas.
 

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