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Soja: do Nordeste da China ao grão dourado do Brasil


Decio Luiz Gazzoni

          Em 2018, publicamos o livro “A Saga da Soja” (bit.ly/4aAAAAy). O texto a seguir é um excerto do mesmo, e as referências bibliográficas de todos os fatos e datas aqui citados podem ser obtidas no referido livro.

          A soja (Glycine max (L.) Merrill) tem como centro primário de origem o nordeste da China. Diversos autores citam a soja como uma planta de interesse socioeconômico desde 5.000 anos AC. Porém, o único registro com fundamentação científica indica que ela passou a ser cultivada entre 1100 e 841 AC.

          Antigamente, no Extremo Oriente, a soja - às vezes chamada de "a vaca da China" - era utilizada nas formas de pó, líquido ou requeijão para fazer missô (pasta fermentada de soja), shoyu (molho de soja), tofu (queijo de soja), natto (queijo de soja fermentada), tempeh, yuba, kinako, hamanatto, kochu chang e o leite de soja. Os grãos imaturos (verdes) e brotos de soja eram considerados altamente nutritivos e assim consumidos pelos habitantes dos países do Oriente.

          Do século I AC até a Era dos Descobrimentos (séculos XV e XVI), a soja foi introduzida no Japão, Indonésia, Filipinas, Vietnã, Tailândia, Malásia, Birmânia, Nepal e Norte da Índia.

 

Da China para a Europa

          No século XVII, o molho de soja tornou-se um item nas trocas comerciais do Oriente para o Ocidente. Sua introdução oficial no Ocidente ocorreu em 1712, em cultivos experimentais na Europa. A soja alcançou os Países Baixos antes de 1737, pois Linnaeus a descreveu nas Cliffortianus Hortus  baseado em plantas cultivadas no jardim Hartecamp. Em 1739, sementes de soja, enviadas pelos missionários que estavam na China, foram plantadas no Jardin des Plantes, em Paris.

          Em 1790, a soja foi cultivada no Royal Botanic Garden de Kew, na Inglaterra e, posteriormente, em 1804, perto de Dubrovnik (Croácia). No final do século XVIII, a soja foi cultivada para fins taxonômicos na Inglaterra, na Holanda e na França. Na mesma época, a soja cultivada na Iugoslávia foi colhida, cozida, misturada com grãos de cereais e, em seguida, serviu de alimento para galinhas.

 

Da Europa para os EUA

          O primeiro cultivo de soja nos EUA ocorreu na Geórgia, em 1765, porém foi testada oficialmente a partir de 1878. Naquele país, diferentes usos foram aventados para a soja, como silagem, feno ou adubo verde.

          Em 1898, foi estabelecido no USDA o Escritório de Introdução de Sementes de Plantas para coordenar a introdução de material vegetal no país. Essas introduções compuseram os bancos de germoplasma de soja nos EUA e forneceram as coleções iniciais para o Brasil, Argentina e outros países.

          Em 1922, a Companhia Staley construiu a primeira grande planta de processamento de soja em Decatur, Illinois. Em 1930, foi criada a NSPA - National Soybean Processors Association, somando-se aos esforços da American Soybean Association (ASA) fundada na década de 1920, com a finalidade de promoção do cultivo e uso da soja. No final dos anos 1940, a produção de soja dos EUA ultrapassou a da China e, na década de 1950, de todo o Oriente.

 

Introduzida no Brasil

          O primeiro registro do cultivo de soja no Brasil é atribuído a Gustavo D´Utra, em 1882, porém este professor da Faculdade de Agronomia de Cruz das Almas (BA) fracassou na produção comercial. O insucesso deve-se a que as cultivares de soja da época eram adaptadas exclusivamente a climas frios ou temperados, predominantes em latitudes superiores a 30º. A região onde a soja foi testada, no Estado da Bahia, caracteriza-se por apresentar clima tropical e baixa latitude (12ºS).

          Uma década depois, em 1891, foram realizados testes de cultivares no Instituto Agronômico de Campinas (IAC-SP), para utilizá-la como forrageira. No início do século XX, o IAC distribuiu sementes de soja para pecuaristas paulistas.

          A soja no Brasil somente teve amplo êxito comercial quando introduzida no Rio Grande do Sul, onde prevalece o clima subtropical. Assim como ocorrera nos EUA, as primeiras cultivares de soja utilizadas no Rio Grande do Sul foram estudadas com o propósito de avaliar seu desempenho como forrageiras.

          Em 1901, foi publicado o primeiro estudo com soja no RS, pelo Prof. Guilherme Minssen, do Liceu Rio-Grandense de Agronomia. Em 1914, F.C. Craig, professor e pesquisador da Escola Superior de Agronomia e Veterinária da Universidade Técnica de Porto Alegre, distribuiu sementes de soja para as estações experimentais de Alegrete, Bagé, Bento Gonçalves, Cachoeira do Sul, Júlio de Castilhos, Porto Alegre, Santa Rosa e Viamão.

          Um estudo pioneiro foi realizado na Estação de Agricultura e Criação em Santa Rosa, RS, pelo Prof. Gentil Coelho Leal e pelo técnico agrícola Floriano Peixoto Machado, com um plantio experimental no ano de 1921. As sementes multiplicadas na Estação Experimental foram repassadas para agricultores da região, sendo os primeiros cultivos comerciais realizados em 1924.

          Em 1941, a soja foi referida pela primeira vez no Anuário Agrícola do Rio Grande do Sul, com área cultivada de 640ha, produção de 450t e rendimento de 700 kg/ha. Nesse mesmo ano instalou-se a primeira indústria processadora de soja do país, em Santa Rosa, e, em 1949, com produção de 25.000t, o Brasil figurou pela primeira vez como produtor de soja nas estatísticas internacionais.

 

Do Rio Grande para o Brasil

          A limitada quantidade de soja produzida no Brasil até meado dos anos 50 era consumida como forragem, para a alimentação de bovinos de leite ou como grãos para a engorda de suínos, nas próprias unidades produtoras, no interior gaúcho. Até a década de 1960, o Rio Grande do Sul era, virtualmente, o único Estado produtor de soja no Brasil, valendo-se, para tanto, de cultivares introduzidas dos EUA.

          Com o estabelecimento do programa de incentivo à triticultura nacional, na década de 1950, a soja foi incentivada, por compor um sistema de sucessão desejável do ponto de vista agronômico e com vantagens econômicas, pelo uso mais intensivo dos fatores fixos de produção, além de fornecer uma alternativa de colheita sob condições climáticas diferentes do trigo, distribuindo o risco do agricultor.

          Mas foi com a tropicalização da soja, baseada na descoberta da característica de período juvenil longo, que ocorreu o espetacular avanço da soja, hoje cultivada em, praticamente, todos os estados do Brasil. Em 64 anos (1960/2023), a área cultivada com soja cresceu 18.294%, e só não foi maior do que o crescimento de 56.951% da sua produção. Mas, nosso maior orgulho é o aumento de 311% na produtividade, partindo de 1.127 kg/ha em 1960 e atingindo 3.508 kg/ha em 2023.

          Deus colocou a soja na China. Mas ela descobriu seu paraíso no Brasil. Em nosso país a soja se sente em casa, muito à vontade, 100 anos depois do primeiro cultivo comercial oficial.

 

O autor é engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja, membro do Comitê Estratégico Soja Brasil, da Academia Brasileira de Ciência Agronômica, do Conselho Científico Agro Sustentável e do Instituto Soja Sustentável.

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