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Bendito buriti: o caminho das águas no sertão

Além da grande importância econômica e social, o buriti é vital para a vereda, o caminho das águas no sertão



O buriti é uma palmeira nativa das Américas Central e do Sul. No Brasil, ele ocorre, basicamente, na região de cerrado. Tem larga distribuição por dez estados do Brasil central, centro-oeste e parte do sudeste.

Além da grande importância econômica e social, o buriti é vital para a vereda, o caminho das águas no sertão.

Prende a suspiração
Cena assim tão linda
Palmeira que não se finda
Em 40 quilômetros de extensão

Esta é a vereda do gibão
Quase no ponto do mapa
em que três estados dão a mão

Minas, Goiás e Bahia
onde o cerrado enfeita o chão

Imagine se o país
feito uma casa de morar
tivesse telha assim em quina
modo da água escoar
pois isso que nos fascina
daqui dessas alturas
tem função de cobertura
é um gigantesco cantil
Esta é a cumeeira do Brasil

“Cumeeira geralmente é a parte mais alta da casa. Quando chove, em cima dessa casa, esta água é distribuída para todos os cantos”, explica Altair Barbosa, professor da Universidade Católica de Goiás.

Na Universidade Católica de Goiás, campus de Goiânia, o professor Altair Barbosa há 40 anos estuda o cerrado.

A aula é sobre os depósitos subterrâneos de água, chamados de aquíferos. Os principais são o Guarani, o Urucuia e o Bambui. Eles se encontram no coração do cerrado, a quina do telhado no Planalto Central. Da vertente sul, brotam as águas da bacia Paraná; a leste, as que alimentam o São Francisco; ao norte, os que alimentam parte da Bacia Amazônica.

Formados há milhões e milhões de anos, os aquíferos são continuamente reabastecidos pelas chuvas. O solo poroso do cerrado facilita a infiltração. Cheio, o aquífero vaza pelas nascentes, garantindo a água dos rios mesmo no longo período seco. E a água iria embora rapidamente se não fosse uns reguladores, umas válvulas com que a natureza presenteou o cerrado: são as veredas. Essas áreas alagadiças onde se destaca o palmeiral.

O nome de um lugar
feito grama se esparrama
Se a ele se associar
um marco de boa fama

Nova York tem a Liberdade
Paris a torre que chamam de Eiffel
Rio de Janeiro o Redentor

Vereda anuncia o cerrado
mas nomeou um encarregado
pra ter propaganda de si
é o vistoso monumento
que com respeito eu apresento
sua excelência, o buriti

“Os buritizais e as veredas são basicamente da mesma idade do cerrado, ou o capítulo inicial da história do cerrado”, explica Altair Barbosa, professor da Universidade Católica de Goiás.

Segundo o professor Altair, essa espécie de buriti das veredas, que leva o nome científico de “mauritia flexuosa”, pode estar no grupo dos seres vivos mais antigos do planeta. Viria lá da remota, longínqua da formação do cerrado.

“O buriti, junto com as veredas, começaram a se formar por volta de 65 milhões de anos”, diz o professor.

O buriti é de crescimento lento. Se alça do chão não por um caule, mas, pelas folhas. Pode passar anos para soltar o tufo de folhagem, primeiro; e levar décadas para expor todo o tronco e frutificar. Alcança altura média de vinte e cinco metros. Na coroa do poste, abre as palmas, um leque gracioso que dá vida à brisa. Às rajadinhas suaves que encanam na vereda um murmúrio como se fosse de praia.

O coquim do buriti,
você já viu um mais
bonitim?

Redondo pro ovalado
tem escama de desenho quadriculado
polpa amarela e o caroço amendoado
a castanha que é um banquete
pros bichos do cerrado

Buriti é morada
Ponto de passagem, de espreita,
esconderijo, restaurante de uma fauna numerosa
Especialmente, os que voam
os papagaios, as maritacas
A maracanã, a jandaia, a cacaué

E, principalmente, as araras
Tanto a azul, como a vermelha, e a canindé

Pros bichos que andam no chão,
Vereda não é um ambiente fácil de se entrar, não
O buriti é o símbolo do chamado grande sertão, onde muita gente diz: “onde tem buriti, tem vereda; onde tem vereda tem buriti; e onde tem buriti tem água”.

Em 1985, a Rede Globo exibiu a minissérie Grande Sertão: Veredas, adaptação da obra-prima do escritor Guimarães Rosa, fazendo os protagonistas a atriz Bruna Lombardi e o ator Tony Ramos. Foi tudo rodado em cenário real. No mesmo em que a reportagem foi feita.

Foi um imenso desafio para os atores. Tony, que sempre fazia o galã romântico, encarou o jagunço Riobaldo. Bruna fazia outro jagunço, Diadorim, que, para esconder o seu segredo de ser mulher, tomava banho longe do bando, nas águas choradas das veredas.
Som: música

É uma história de amor sem final feliz. Diadorim morre ao derrotar o Vilão Hermógenes, vivido por Tarcísio Meira.

Vinte e quatro anos depois, o sertão e os buritis ainda continuam bem vivos na lembrança deles.

“É mágico. É absolutamente encantador no meio do sertão ter o milagre da água”, disse Bruna Lombardi.

Esse milagre acontece intercessão de quem e como? No grande sertão, vereda é sinônimo de nascente. A vereda se enche é com as fontes murmurantes.

Como um dever de casa dado pelo professor Altair Barbosa, da Universidade Católica de Goiás, foi feito um ensaio de vaza. É um exemplo corriqueiro mostrado por intermédio de uma esponja de pedreiro e um conta gota de remédio.

“A folha do buriti amadurece, fica seca, cai, começa a acumular. Cai em uma área úmida. Começa a apodrecer. A matéria orgânica começa a acumular. Vai formando camadas”, disse Walter Neves, biólogo.

Walter Neves é engenheiro e biólogo do IEF, Instituto Estadual de Florestas de
Minas Gerais. Com poucos centímetros, a água brota da turfa.

Não é só a palha que forma a barreira. Amarrando tudo, compactando o piso turfoso que tem camadas de três, quatro metros de fundura, está a raiz do buriti. É uma raiz fora do comum e super ramificada, em formato de feixe.

Uma ventania arrancou do chão um buriti já ancião entre Minas e Goiás. A queda da vazão mostra o quão engenhoso é o sistema de raiz para ser firmar em terreno brejoso. Ao contrário do resto do cerrado, o buriti não finca o poste para baixo. Faz que nem guacho. A raiz é um novelo embaraçado que manda milhões de dedinhos para todo lado.

As raízes embaixo da terra encharcada se estendem e se entrelaçam por dezenas, centenas de metros. De modo que um buritizal é como se fosse um enorme corpo de um conta gotas.

“A água da chuva fica retida na esponja. Durante a estiagem a água está guardada e está saindo lentamente”, esclareceu o biólogo.

A ponta final do conta gotas fica na Reserva do Acari, na Serra das Araras, na foz de uma vereda. A água que foi armazenada ao longo de quatro quilômetros cai em uma cascatinha. Forma um pequeno poço, corre pela pedra, cai no escorrega para desaguar num ribeirão. É cristalina a água que vem da vereda.

O jorro das veredas forma córregos, ribeirões, as graciosas lagoas marginais. O Rio Pandeiros é uma maravilha que se derrama e forma o pantanal mineiro, principal berçário do alto e médio São Francisco.

É ousadia de nossa parte tratar em verso e prosa de um assunto que virou arte nas mãos de João Guimaraes Rosa.

Do buriti é a grande fonte
do que quer que se conte
O escritor que remoeu o sertão
nasceu em Cordisburgo
A cidade do coração
em frente a estação de trem
onde, do outro lado da rua
o pai tinha um armazém

A casa e o armazém onde Guimarães Rosa passou a infância, ouvindo causos
dos sertanejos, viraram um museu. O visitante pode não só ver como também ouvir trechos dos livros na voz de José Osvaldo dos Santos, o Basinha, o mais popular estudioso do autor na cidade ou dos alunos contadores de histórias que dão plantão no museu.

Do mesmo jeito que se finca como um monumento na vereda, buriti se estabelece também como referência na obra de Guimarães Rosa. Um dos
livros dele tem justamente o título de Buriti. Espécie que ele estudou profundamente. Inclusive chegou a prever na ficção uma coisa triste que acabou acontecendo na realidade. Brasinha lembra uma passagem quando um fazendeiro que quer explorar uma magnífica vereda.

“Ninguém separa essas terras dessas águas. Estudaram o que não vale a pena. Quem dinheiro. Nem não é possível acabar com ele. Senão, eu mandava valar os regos. Plantava eucaliptos em cuba de barro”, disse.
O buriti é matéria-prima para xampu, creme para pele e filtro solar. A polpa é muito rica em betacaroteno, o protege a pele. Para o índio é a árvore da vida. Para o sertanejo, é a palmeira de Deus. Da raiz à ponta das palmas, o buriti é aproveitado.

O Walter Neves, do IEF, Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais, mostrou como o buriti se alastra fácil. O fruto apodrece na água e vira comida dos peixinhos. No fruto seco, sobra o caroço, a amêndoa. Também tem a gema de onde surge o broto, a nova palmeira.

Na beira de uma vereda sadia sempre há centenas, se não milhares, de
buritis meninos. As suas folhinhas se confundindo com as do capim. Conforme cresce, vai soltando os leques.

As folhas se desenvolvem diretamente do tronco. Procuram o sol estendendo os braços. Palmas na ponta formando o chapéu. Adulto, o buriti tem a feição de um mastro com as mãos postas pro céu.

Se você fosse um passarinho que tipo de gravetinho iria pegar para construir um ninho? Para quem tem a vereda dentro de si, nada mais nobre do que isso.

No sertão de Urucuia, propriedade da Lauziraci, que, num capricho de geraizeira, revestiu a casa inteira com tala de buriti. “Eu amo o buriti. E seu eu
pudesse, moraria dentro do brejo. Eu faço isso. Eu revesti a parede da despensa, tem os rodapés, armário de cozinha e banheiro”, falou.

Lauzi faz coleta na do fundo do quintal. A extração é só de galho seco. O galho ainda verde prejudicaria a planta. Dependendo do que vai fazer, leva-se a palha também. Na maioria das vezes, carrega-se só o braço que é a matéria-prima, básica do milenar artesanato de buriti.

Da casca do braço é que tiram a talinha, uma lasca, parecida com a de bambu. O miolo é fibroso e leve, parecendo cortiça ou isopor. Lixa, cola, encaixa e apara. Rapidinho, a maestria cabocla transforma o buriti em peças de uso: um porta-trecos, um cofrinho, um vaso, um baú para guardar roupa; ou de embelezar simplesmente, coisas de se apreciar pelo puro prazer de enfeite.

A família da Lauzi é uma das milhares que herdaram das antigas tribos indígenas o que poderíamos chamar de “cultura do buriti” no centro-oeste brasileiro.

Andando pelo imenso município de Januária, passando por Itacarambi, Bonito de Minas, Formoso, Chapada Gaúcha, Arinos e Urucuia encontra-se muita gente no desfrute dos buritizais nativos.

Na Serra das Araras, o grande sertão é uma mesa com um degrau. No degrau
há um grande buraco que se estende como um vão e ganha o nome de vão do buraco. Guimarães Rosa pôs este lugar no mapa, um cenário que arrebata. O paredão cercando o brejal faz ninho pro buritizal.

Dá prazer ver a preciosidade que ainda é capaz de fazer o seu João Grilo, presidente da Associação dos Moradores de Santa Tereza do Buraquinho, uma das cinco do vão do buraco.

Com a mesma palha com que as mulheres tecem redes e esteiras, algumas até encapando as folhas com tirinhas de saco plástico, fazendo uma reciclagem colorida no sertão, o seu João Grilo tece uma carocha.

“A carocha é uma capa para chuva, que, antigamente, só um filho de fazendeiro podia comprar”, contou seu João.

Tem outro tipo de pião. É uma cabacinha com um furo para ficar zunir com a rotação. O cordão torcido é feito com a seda, a película que recobre a folha do buriti. O pessoal trança e fica uma ótima fieira para fazer o brinquedo girar.

Tempo de alegria é quando o buriti amadurece os cocos. Fartura. É quando se pode ir para roça torar um quadro inteiro de capina sem se preocupar com a matula. É só tirar o facão da cintura de braço de buriti, descascar o fruto e está pronta a refeição.

As comadres se reúnem em volta da caroçama dourada para fazer uma coisa deliciosa. A polpa é raspada e vai para a panela só com açúcar ou rapadura. No grande sertão, o doce de buriti é iguaria esperada.

A música de quem vive nas veredas também é única, inspiração dos buritis. A trilha sonora da reportagem é do violeiro Manoel Carvalho. Ele aprendeu a tocar sozinho e criou um jeito próprio de pontear. Delicado. O dedo corre nas pontas como água de cabeceira.

Hoje ele tem 73 anos, mas até o 60 o violeiro trabalhou muito com o buriti. Fazia rego d’água, ajudou a montar monjolo, subiu em muita palmeira para tirar folha e colher coco. Mas num belo dia “olhei para cima e gelei; cabei a coragem de subir”, contou.

Enfermo, o seu Manoel perdeu um pulmão. Ao se recuperar, perdeu de vez a coragem de mexer em vereda, que ele viu, também fica doente.
Onde tem buriti, tem vereda; onde tem vereda, tem buriti e onde tem buriti tem água. Se faltar um, acaba para sempre. Outros ambientes devastados podem se recuperar. Mas uma vereda morta, nunca mais volta a ser o que era.

Você já se sentiu um pontinho
solto assim num oco de mundo
sem cerca nem vizinho
o horizonte lá no fundo?
Pois toda a esparramança
uma imensa vastidão até onde a vista alcança
é o chamado grande sertão
A largueza do cerrado
desenha a solidão

O ermo facilita a destruição, longe dos olhos e longe da fiscalização. Queimada para renovação de pastagem. O fogo torra o pé de buriti. A vereda se apaga. É o capim dando fim ao resto da vegetação. E pecuária no lugar não é bem o dom. Como se vê em Januária, vaca desmaiada de fome levada em carroção.

Fora o fogo e o pisoteio
Houve também o devaneio
do plantio de eucalipto
Desastroso incentivo
de floresta comercial
no meio do mato nativo

Na década de 70 o governo prometeu encher a mão de quem ocupasse o espaço produzindo carvão paras usinas de aço. Desmatado e recortado com régua e compasso, o cerrado foi espoliado mais que no tempo do cangaço.

Você não faz estimativa do tamanho do fracasso e de quanta vereda ativa ficou em carne viva. Desolação que se apresenta entre os Rios Peruaçu, Cocha e gibão.

Além do eucalipto, outros programas repetiram o fiasco, como lembra o técnico Walter Neves. “Dentro da bacia do Rio Pandeiro são 380 mil hectares. Todos os projetos que foram implantados foram à falência”, falou.

O dinheiro jogado fora comprometeu a fauna e acabou com a flora. E é com areia que o cerrado chora. O assoreamento traz o secamento do buritizal, como explicou Rinaldo de Sousa, gerente do IEF, Instituto Estadual de Florestas.

“Quando chove, vem o assoreamento da vereda. Fica totalmente tomada pela areia. Está em franco estágio de desaparecimento”, disse Sousa.

No pó da erosão muita vereda se atola vítima também do sucesso da irrigação em progresso nos solos de melhor condição.

A agricultura moderna paga o ingresso à globalização do buriti tirando água para molhar a plantação. E corta as veredas com estradas para escoar a produção.

Presa sem saída, buriti, num lugar, de sede, perde a vida. No outro, se afoga. O excesso de água o liquida.

Fora estrada, pasto e lavoura acuando os buritizais, as cidades do planalto, como quem tira cisco com vassoura, também varrem as veredas para debaixo do asfalto. Um exemplo de quem isso faz é a capital de Goiás.

Que os goianos nos desculpem a falta de etiqueta. O plano piloto que tinham para um modelo de capital foi deixado na sarjeta. Registram um crescimento dos maiores do planeta fazendo um zoneamento que sepulta as veredas com prédio, avenida e cimento.

Era para ter 50 mil habitantes, mas já são dois milhões na grande Goiânia. Mais de cem veredas morreram. Sabe-se lá quantos pés de buriti. O que faz o cartógrafo e pesquisador goiano Antonio Teixeira Leite lamentar.

“A ocupação chega e varre do pedaço aquilo que existia de maneira natural. Se a gente não tomar os cuidados necessários, realmente veremos veredas só nas fotografias e nas reportagens”, disse o cartógrafo.

No grande sertão do norte de Minas se faz um esforço para conter a devastação das veredas. Proporcionalmente, é o ponto de maior concentração de áreas de preservação do país. Tem dois parques nacionais, três estaduais, três áreas de proteção ambiental, reserva sustentável, refúgio silvestre, reserva indígena e RPPNs, Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Mas o que se vê no mapa é uma coisa e a realidade é bem outra. Dos buritizais saltam duas graves interrogações. São perguntas de resposta difícil.

Se diz que a face do bem é a contraface do mal. Sina que faz mais um refém
no parque nacional. Foi criado no papel. Tiraram o antigo dono para o mato, feito um véu cobrir as casas em abandono.

O Parque Nacional Grande Sertão: Veredas foi criado há 20 anos numa enorme área de propriedades particulares. Várias fazendas foram desocupadas, como uma que tinha um rebanho de cinco mil cabeças de gado. O processo de desapropriação se arrasta. O mato já toma conta do que foi largado. Mas, pouca gente viu a cor do dinheiro.

Muitos dos pequenos proprietários não conseguiram sair por não terem para onde ir. Esse é o caso da dona Atanice e de Raimundo Pereira. Têm 120 hectares. Mas, não podem vender porque ninguém compra. Não podem explorar por causa das regras do Ibama.

O seu Raimundo passa nervoso com o que lhe parece absurdo. Além da fazenda algemada, é acusado de situação ilegal por viver no que é seu dentro do parque nacional.

Em Brasília, procurando resposta para o desabafo do veredeiro, de que o Ibama embroma, ficamos sabendo que o assunto foi passado para outro órgão do governo: o recém-criado Instituto Chico Mendes, que agora é quem cuida dos parques.

Rômulo Melo, presidente do Instituto Chico Mendes, dá razão à queixa do seu Raimundo e, surpreendentemente, reconhece que a criação de parques atropelou direitos dos proprietários.

“Há alguns anos atrás, criava-se uma unidade de conservação a partir de uma forma quase arbitrária. Hoje, não é mais assim”, falou Melo.

É de se espantar. O governo deve uma fortuna de mais de R$ 10 bilhões para desapropriados em parques nacionais. Não foi regularizada ainda nem a metade das áreas incluídas nos mapas nos últimos 70 anos. Mas, o dever da promessa é cumprido.

“No caso específico do seu Raimundo nós vamos trazer para Brasília, encontrar o processo e dar uma posição firme nos próximos 15 dias”, avisou Melo.

Enquanto se aguarda a correção da injustiça com os proprietários, os buritizais incluídos nas unidades de conservação estão protegidos. Mas fora está outra questão.

Homenageado em museu, assunto de violeiro e consagrado na literatura, o buriti ainda faz parte da realidade dura da vida de um roceiro, que, no sertão do Gerais, é chamado de veredeiro.

O seu Izaul Ribeiro e a dona Pedralina moram praticamente dentro de uma vereda. Tiveram 11 filhos. Nove vivendo ainda com eles. A família drenou uma pequena área no meio do buritizal onde cultiva uma rocinha.

As crianças lambiscam o dia inteiro os frutos do cerrado. Até a caçulinha já aprendeu a quebrar a castanha do babaçu. Tem coquinho tucum, tem pequi à vontade. O leite, a mãe faz de uma palmeirinha brava, a xiriri.

Para ir à cidade buscar mantimento, todo mês é um sofrimento. O seu Izaul traz a feirinha em lombo de jumento, fazendo um percurso de dez léguas de comprimento.

O que eles recebem de aposentadoria e Bolsa Família fica longe das necessidades do mês. Fora os trens de cozinha e as roupas que ganham, os bens da família se resumem ao que conseguem aproveitar do buriti.

A cobertura do rancho é de folha de buriti; a ripa que prende a palha da parede; é buriti; o banco, na frente do barraco; a porta; a embira que amarra a porta; e o frontão também é de buriti.

No interior, onde todos passam a noite num quarto único a cama de casal e as outras duas de solteiro também são feitas com a palmeira. O veredeiro dorme, literalmente, nos braços do buriti.

A casa da família está inabitável, com as paredes e a cobertura apodrecidas, esburacadas. Para reconstruir, seu Izaul precisa de folhas verdes. As secas não servem. Ele até conseguiu fazer o cômodo provisório. Mas a fiscalização anda apertada na região e ele não quer se arriscar.

Só pra lembrar: vereda é nascente e curso d´água. Pela lei, deve ter APP, Área de Preservação Permanente, numa faixa de 80 metros, trecho que não pode ser explorado nem ocupado.

O seu Izaul aproveita a reportagem para fazer um pedido ao gerente do IEF, Instituto Estadual de Florestas. “Para ele dar autorização as palhas para poder fazer meu barraco”, disse.

“A lei não nos permite autorizar nem ocupação das veredas nem a utilização delas para esses fins. Ficamos praticamente impossibilitados de dar autorização formal para que ele faça isso”, respondeu Rinaldo de Sousa.

“A lei, às vezes, não vê a situação da gente. Não vê como as pessoas da roça sofrem”, lamentou seu Izaul.

O que você faria se estivesse no lugar do seu Izaul? A rigor, pela norma
ambiental, essa família teria que sair. Mas, eles iriam para onde?

Uma pesquisa feita no norte de Minas mostrou que só na bacia do rio Pandeiros há pelo menos cinco mil famílias como a do seu Izaul Ribeiro e a dona Pedralina vivendo nestas condições.

Na confluência de Minas, Goiás e Bahia, pode passar de 20 mil o número de famílias vivendo nas mesmas condições.

Não é por avareza, mas por precisão que o bolsão de pobreza faz a devastação. Para sobreviver, o veredeiro drena e queima a natureza. E transforma o cerrado em carvão.

Humberto Candeias, superintendente do IEF, Instituo Estadual de Florestas de Minas, contou que o plano de combate aos fornos clandestinos teve que ser mudado pelo impacto que causou.

“Nós começamos a derrubar os fornos. Quando chegamos a cerca de 500 fornos, percebemos que a população estava passando fome”, disse Candeias.

As famílias estão sendo instruídas a explorar sem destruir. Há incentivo para projetos como a produção de carvão de coco babaçu, que vem tendo sucesso e é até chamado de eco-carvão. Mas é uma gota d´água diante do tamanho do problema. Uma solução maior talvez seja transformar o veredeiro de explorador a guardião dos buritizais. Pagar pela prestação de serviços ambientais.

“É uma alternativa extremamente viável, onde você substitui a renda com a utilização da vereda por uma renda, realmente, para ser protetor dessa vereda”, completou Candeias.

O pagamento depende da Bolsa Verde, já aprovada em Minas, aguardando regulamentação. Se tudo der certo, resta outra questão.

Quando mencionado o caso das palhas, Rômulo Melo, o presidente do Instituto Chico Mendes, do alto da autoridade que o cargo federal lhe confere, primeiro expressa uma opinião que, qualquer um de nós, no lugar do seu Izaul, subiria hoje mesmo no pé de buriti para tirar as palmas. “É obvio que nos interessa a proteção das veredas. Nos interessa a sobrevivência digna do ser humano. Eu acho que, nessa dimensão, não é necessária uma solicitação de autorização”, disse.

Segundo, ele bate na tecla da distância que existe entre o mundo real e a legislação ambiental. “É possível que a lei esteja desconectada da realidade social. Por tanto, precisa ser adaptada. Entendemos que o Código Florestal precisa ser modernizado. A resposta para isso é mexer nas regras”, completou Melo.

Um grande diz que diz vamos ter com certeza para que as regras do país levem em conta a natureza tanto da nossa pobreza e riqueza como dos nossos buritis. Assim, que sabe, um dia possa o Grande Sertão: Veredas ter um final feliz.
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