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Produzir sem destruir: geraizeiros, vazanteiros e comunidades de fecho de pasto mantém preservado o sertão mítico brasileiro

Comunidades têm estreito contato com a natureza que caracteriza a região


Foto: Freepik

Comunidades têm estreito contato com a natureza que caracteriza a região, além da capacidade de produzir sem destruir o meio ambiente

Espaço de travessia onde o real e o sobrenatural se encontram – assim é o sertão imortalizado pelo escritor mineiro Guimarães Rosa em clássicos como Grande Sertão: Veredas e Sagarana. Na literatura, vaqueiros, jagunços e personagens como Riobaldo e Diadorim percorrem amplos territórios, se enfrentam e dividem a cena com seres míticos, num permanente duelo entre o bem e o mal. Fora das páginas dos livros, porém, os perigos são outros: devastação ambiental, grilagem de terras, pressões de grandes grupos econômicos e invisibilidade ameaçam comunidades que ainda preservam o modo de vida tradicional na área de transição entre cerrado e caatinga situada no norte de Minas Gerais e oeste da Bahia.

Geraizeiros, vazanteiros e comunidades de fundo e fecho de pasto têm em comum o estreito contato com a natureza que caracteriza a região, além da capacidade de produzir sem destruir o meio ambiente. Profundos conhecedores dos biomas onde vivem, esses grupos exercem atividades de subsistência num sistema produtivo de baixo impacto e ecologicamente adaptado, que combina agricultura familiar, criação de animais soltos, sem desmatamento, extrativismo sustentável e manejo de espécies nativas. Ao mesmo tempo, são grupos culturalmente diferenciados, com características únicas e formas de organização social próprias, protegidas pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal e pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tratado ratificado pelo Brasil.

Guimarães Rosa escreve que os gerais são o lugar “onde o coração permanece à larga”, fica livre, sem dono. Na definição mais direta de Neli Soares Santos, agricultora e liderança geraizeira do Município de Vargem Grande do Rio Pardo (MG), os gerais são simplesmente o cerrado. Com milhares de espécies de plantas e animais, a savana mais biodiversa do mundo ocupa cerca de dois milhões de quilômetros quadrados no coração do Brasil, mas vem perdendo cobertura nativa de forma acelerada.

Dados do Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado), mantido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parceria com a plataforma Map Biomas, mostram que a savana perdeu 712 mil hectares em 2024 e mais de 1 milhão de hectares em 2023. Em 2024, o cerrado foi o bioma mais castigado do país, somando mais da metade do total da área desmatada (52,5%). 

“Como geraizeira, tenho orgulho de dizer que sobrevivo dos gerais, do cerrado, sem devastar”, diz Neli. “Em outros estados, o pessoal não consegue viver do manejo, mas nós conseguimos. É uma vida pobre, difícil, mas muito boa”, explica. Catadora de sementes e de frutos nativos como pequi, mangaba e araticum, Neli cultiva mandioca, milho e feijão na pequena propriedade localizada no Assentamento Vale do Guará, com técnicas manuais e tradicionais, sem retirada da vegetação. “O cerrado está no nosso quintal”, explica.

“Os geraizeiros, assim como outros povos tradicionais, nos dão o exemplo de qual caminho seguir para o cuidado da nossa casa comum, principalmente nesses tempos de eventos climáticos extremos”, avalia o procurador da República Edmundo Dias Netto Júnior. Assim como outros geraizeiros, o que Neli quer é continuar nas terras onde sempre viveu, seguindo as tradições que sempre praticou. “A gente precisa estar na terra para ter sobrevivência. É o que a gente sabe fazer. Se não for do cerrado, vamos sobreviver como?”, ela pergunta.

As ameaças para o modo de vida tradicional são muitas e se traduzem, de forma concreta, no cultivo intensivo do eucalipto e na mineração, que encurralam cada vez mais as comunidades. Os geraizeiros tentam resistir, porém a pressão é grande. “Apesar da proteção constitucional, convencional e infralegal, apesar de todo o arcabouço normativo existente, as comunidades tradicionais são deixadas desprotegidas, seja territorial, seja culturalmente”, explica Edmundo. “Há uma verdadeira inércia na demarcação territorial que os expõe aos avanços predatórios da mineração e da monocultura do eucalipto”. As duas atividades devastam enormes áreas de mata, destroem nascentes e utilizam as águas do bioma de forma predatória, ao passo que a demora do estado em assegurar direitos amplia a vulnerabilidade dos povos.

Na contramão desse cenário, um caso de sucesso é a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Nascente Geraizeiras, área de proteção com mais de 38 mil hectares instituída em 2014 pelo Instituto Chico Mendes da Biodiversidade após recomendação do Ministério Público Federal e do MP Estadual. Localizada perto do município de Rio Pardo de Minas, a reserva beneficia 35 comunidades e centenas de famílias, que coletam na área sementes e frutos, além de atuarem para reflorestar trechos antes degradados e proteger nascentes.

A reserva surgiu a partir de demandas dos próprios geraizeiros, como explica o procurador Edmundo Dias. Neli faz parte do Conselho Consultivo da RDS, assim como outras lideranças, e eles estão em permanente contato, debatendo as questões que afetam o grupo em reuniões que acontecem a cada dois meses numa comunidade diferente. A ideia é mobilizar, juntar esforços para enfrentar as dificuldades e garantir assim uma vida melhor e com mais segurança.

Em outra frente de trabalho, o MPF tenta proteger os geraizeiros do Vale das Cancelas do avanço da mineração, em atuação em parceria com as Defensorias Públicas da União e de Minas Gerais. O objetivo é que a Justiça obrigue o Poder Público a cumprir o dever de consulta prévia das comunidades afetadas pelo empreendimento, como previsto na Convenção n° 169. O MPF também quer que os projetos de mineração e de construção de mineroduto sejam analisados em conjunto no licenciamento ambiental, e não de forma separada, como pretende o empreendedor.

Enquanto os geraizeiros vivem nas terras altas do cerrado mineiro, os vazanteiros estão nas terras baixas, às margens do Rio São Francisco e afluentes. A vida desse grupo tradicional é regida pelo ciclo das águas. “O rio é muito mais do que um parente. É como um pai para nós”, explica Cícero Ferreira de Lima, 69 anos, agricultor e presidente da Associação de Vazanteiros de Itacarambi, município situado às margens do São Francisco e a 659 km de Belo Horizonte. “Nossa vida toda é a lavoura e a pesca; para tudo, dependemos do rio”, diz ele, ao enfatizar o respeito profundo que as comunidades vazanteiras dedicam ao Velho Chico.

Os integrantes da comunidade usam as terras férteis que aparecem nas margens e nas ilhas temporárias na época da seca para plantar lavouras como feijão, milho e outros alimentos de crescimento rápido. A colheita precisa acontecer antes que as águas subam novamente, no tempo das cheias. As áreas de vazante são território da União. “A nossa principal luta é para que essas terras sejam demarcadas e repassadas para uso da comunidade”, diz ele. 

Embora tenha nascido em Paulo Afonso (BA), também às margens do São Francisco, Cícero vive em Itacarambi há 60 anos. Inúmeras famílias ocupam a região há décadas, resistindo aos avanços do agronegócio, da mineração e à destruição do cerrado nas margens do rio. “Essa área só está preservada porque existem famílias que vivem aqui há centenas de anos”, afirma ele.

Em 2013, num trabalho pioneiro, o MPF assinou, como órgão interveniente, um Termo de Autorização de Uso Sustentável (Taus) para que a comunidade vazanteira e de pescadores artesanais de Caraíbas, no município de Pedras de Maria da Cruz (MG), use as terras tradicionais no rio sob domínio da União, em área destinada de dois mil hectares. Foi uma vitória importante para o grupo, embora o termo tenha sido questionado na Justiça. Neste mês de outubro de 2025, mais de dez anos depois do primeiro Taus, está prevista a assinatura de um novo acordo, desta vez em favor da comunidade de vazanteiros de Canabrava, em Buritizeiro (MG).

“As leis são boas, mas elas não são cumpridas de forma igual para todo mundo”, avalia Cícero. De acordo com ele, além da efetivação de direitos já garantidos pela legislação e da demarcação de territórios, os vazanteiros buscam visibilidade, para que a cultura, os saberes e o modo de vida em sintonia com o São Francisco possam ser valorizados e repassados para as novas gerações.

A preservação marca também os territórios das comunidades de fundo e fecho de pasto, grupos tradicionais das áreas de transição em cerrado e caatinga no oeste da Bahia. A ocupação da região remonta a fins do século XVII, início do século XVIII, como explica Valdivino Rodrigues, morador do Município de Uauá e liderança da Articulação Estadual das Comunidades Tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto. De acordo com ele, existem mais de 1.500 grupos espalhados pelo sertão baiano. Em 2020, levantamento da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia, em parceria com a Universidade Federal da Bahia, mapeou 980 comunidades em 56 cidades.

Uma das principais características desses povos é a criação coletiva de gado, ovelhas e cabras em territórios de uso comum. Se as áreas estão localizadas perto das pequenas propriedades dos agricultores, de forma contígua a elas, são chamadas fundos de pasto. Já os fechos ficam mais distantes, podendo estar a até 50 km das habitações. Segundo Sandro de Oliveira Ferreira, liderança e vereador no Município de Oliveira Dos Brejinhos (BA), por estarem próximos das casas, os fundos de pasto são mais usados para criar ovelhas e cabras, que exigem maior presença humana e manutenção. Já os fechos são mais utilizados para o gado, criado solto em meio à vegetação nativa.

“Os fundos e fechos de pasto, aqui na Bahia, são mais um exemplo de que são os povos e comunidades tradicionais os verdadeiros protetores do meio ambiente no Brasil” afirma o procurador da República Marcos André Carneiro da Silva, apontando que a atividade de subsistência dos grupos ocorre em total respeito com as leis ambientais. “Quando se trata de preservação ambiental, temos uma dívida enorme para com os povos e comunidades tradicionais brasileiras”, diz ele. Os grupos cultivam uma forte identidade cultural, com festas e manifestações próprias, além dos laços de parentesco e compadrio que os unem há gerações.

As áreas coletivas de criação estão localizadas em terras estaduais, devolutas. E a Constituição da Bahia determina que esses territórios sejam destinados aos grupos tradicionais. Para isso, as comunidades devem ser reconhecidas oficialmente e assinar um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso, que garante a posse coletiva do local por 90 anos, renováveis. O processo, no entanto, pode demorar anos para chegar ao fim, quando chega. Pouquíssimas comunidades têm hoje suas terras regularizadas, ao passo que as áreas passaram a ser cada vez mais cobiçadas por empresários do agronegócio e grileiros, na expansão desenfreada das lavouras mecanizadas de soja, milho e algodão pelo interior baiano. Grandes empreendimentos de geração de energia renovável também podem representar uma ameaça.

“Por um lado, o estado não regulariza a posse da terra em favor das comunidades; por outro, há diversos casos de fraudes nos registros imobiliários de terras públicas na Bahia”, esclarece Marcos André. “De uma hora para a outra, as comunidades podem sofrer pressão, até mesmo judicial, para sair de suas terras tradicionais e desocupar as áreas em favor de terceiros, o que as coloca em permanente situação de risco”. De acordo com ele, a grilagem pode ser recente ou antiga. Por isso, é importante que os empresários interessados em investir na região analisem a cadeia dominial das terras que pretendem comprar antes de qualquer aquisição, além de verificar se há grupos tradicionais no local.

Uma situação de tanta incerteza gera conflitos fundiários que resultam em violência, mais uma ameaça para os povos do sertão. “Tem gente que tem medo de levar o gado para as áreas de fecho e não voltar mais, sumir por lá”, conta Adalgisa Maria de Jesus, 61 anos, que é filha e neta de fecheiros e hoje trabalha como agente comunitária de saúde em São Manoel, distrito de Correntina (BA). A percepção de risco se confirma pelos números. Segundo o relatório “Além da Floresta: Crimes Socioambientais nas Periferias”, produzido pela Rede de Observatórios da Segurança com dados das Secretarias de Segurança Pública, a Bahia registrou 428 casos de violência contra povos e comunidades tradicionais entre 2017 e 2022. Os crimes de ameaça representaram mais da metade das violações (53,27%), seguidos das lesões corporais (22,66%) e injúrias (12,15%). Onze homicídios dolosos e um feminicídio foram registrados no período.

“Falta muita ação governamental para garantir a permanência das comunidades nos territórios tradicionais”, avalia Valdivino. Apesar disso, algumas vitórias podem ser celebradas. Uma delas é a inclusão do grupo no nº 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Com a medida, os fundos e fechos de pasto passaram a ser atendidos também por políticas nacionais, e não apenas estaduais.

Outro reconhecimento importante foi a declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, da inconstitucionalidade da lei baiana que fixava prazo até dezembro de 2018 para que os grupos de fundo e fecho de pasto formalizassem o pedido de reconhecimento de seus territórios tradicionais. O marco temporal caiu após ação apresentada pelo MPF. “Isso deu mais tempo para as comunidades se organizarem”, diz Valdivino. Além de acompanhar a questão fundiária no estado, o MPF está em permanente contato com os povos para verificar o efetivo cumprimento dos demais deveres estatais em relação aos fundo e fecho de pasto, incluindo o acesso à saúde, educação, água, entre outros.

"A sociedade brasileira deveria dar mais valor às comunidades tradicionais pelo papel que elas desempenham, seja na proteção do meio ambiente, seja no aspecto cultural", avalia Marcos. "O Brasil é um país multicultural. Essas culturas não se fundem para formar uma só, pelo contrário: são várias culturas, que querem continuar existindo individualmente e que têm esse direito. As comunidades tradicionais brigam pelo direito de existir e muitas vezes isso não é bem assimilado pelo restante da sociedade, seja porque não se compreende a natureza das atividades por elas desenvolvidas, seja porque não se conhece a fundo as formas de organização e de desenvolvimento dessas comunidades", conclui.

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