Um tributo à trajetória pessoal, profissional e política de um líder que ajudou a moldar o setor sucroenergético brasileiro.
Introdução
O falecimento de José Paulo Stupiello, aos 90 anos, encerra um ciclo raro de liderança, conhecimento e serviço público ao setor sucroenergético e à sociedade. Engenheiro-agrônomo formado pela ESALQ/USP, doutor em Tecnologia do Açúcar e do Álcool, professor por três décadas e dirigente histórico da STAB, Stupiello foi ponte entre lavoura, usina, universidade e Estado. Em todos esses espaços, deixou uma marca que combina rigor técnico, generosidade intelectual e compromisso institucional.
Infância, formação e valores pessoais
Paulistano, orgulhava-se de suas raízes e de seu pertencimento a São Paulo — traço que se traduzia em disciplina, franqueza e amor ao trabalho bem-feito. Na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP) encontrou o ambiente onde a curiosidade técnica e o senso de missão coletiva floresceram. Ali se graduou em Engenharia Agronômica e concluiu o doutorado em Tecnologia do Açúcar e do Álcool, abrindo caminho para uma vida de pesquisa aplicada e magistério. Em casa, cultivava laços sólidos com a família e uma delicadeza que se revelava em hobbies como o cultivo de orquídeas — metáfora viva de seu método: paciência, técnica e cuidado cotidiano.
Magistério e pesquisa: a cana como sistema vivo
Em 1963, Stupiello iniciou sua carreira docente no Departamento de Tecnologia do Açúcar e do Álcool da ESALQ, onde lecionou por 32 anos. Formou gerações de engenheiros, químicos, agrônomos e gestores que, mais tarde, ocupariam funções decisivas na cadeia da bioenergia. Sua abordagem didática unia fundamentos (fisiologia da cana, qualidade de matéria-prima, fermentação, controle de impurezas) e visão sistêmica (integração campo–indústria, decisões de colheita, ATR, perdas e rendimento).
Em sua produção técnica, a cana-de-açúcar nunca foi apenas um cultivo, mas um ecossistema tecnológico. Investigou qualidade industrial de matérias-primas, fluxos de fermentação, purezas de melaço, impactos de impurezas vegetais e boas práticas para reduzir perdas, sempre com a pergunta de fundo: como transformar ciência em produtividade e sustentabilidade? Ao articular laboratório, planta-piloto e chão de fábrica, aproximou o método científico de operadores, mestres de açúcar, analistas de laboratório e diretores industriais, democratizando o acesso ao conhecimento.
Liderança institucional e política setorial
A vocação de organizador de gente e de ideias levou Stupiello a atuar na construção de instituições. Em 1963, foi um dos fundadores da STAB – Sociedade dos Técnicos Açucareiros e Alcooleiros do Brasil, organização criada para promover o intercâmbio técnico, científico e cultural entre as regiões canavieiras do País e do exterior. Em 1990, foi eleito presidente da STAB e, desde então, conduziu a entidade com firmeza e visão estratégica, fortalecendo suas regionais, seu calendário técnico (simpósios, seminários, comitês) e sua revista de referência.
Essa atuação é — em sentido pleno — política. Stupiello foi um formulador e articulador de políticas setoriais, defendendo a bioenergia como ativo nacional, a difusão de boas práticas, o papel do etanol na matriz energética e a modernização contínua da agroindústria. Sua política não se fez nos palanques, mas nos fóruns técnicos, nas mesas de consenso e nas salas de aula, onde converteu divergências em pautas comuns: qualidade de matéria-prima, eficiência industrial, formação de quadros, segurança de processo, inovação e sustentabilidade.
STAB em Piracicaba: casa das convergências
Em Piracicaba, a STAB tornou-se, sob sua liderança, uma casa da convergência. Ali, fornecedores, usinas, fabricantes, pesquisadores e consultores se encontravam em um mesmo idioma: o dos dados, dos ensaios e das soluções compartilhadas. Stupiello instituiu padrões de excelência técnica, incentivou a produção de conteúdo aplicado e ampliou o alcance nacional da entidade, mantendo vivo o diálogo com as regionais (Setentrional, Leste, Centro e Sul).
A Revista STAB – Açúcar, Álcool e Subprodutos foi uma de suas obsessões generosas: espaço para documentar avanços, divulgar protocolos e preservar memória técnica. Em cada edição, via-se sua pedagogia: artigos claros, replicáveis, com métricas e lições que chegam à usina. O resultado foi uma comunidade profissional mais madura, exigente e cooperativa, capaz de enfrentar crises e aproveitar ciclos de oportunidade.
ESALQ e o pacto entre ciência e indústria
O vínculo de Stupiello com a ESALQ foi intenso e duradouro. Mais que professor, foi orientador e mentor. O corredor entre o campus e as unidades industriais virou via de mão dupla: problemas reais voltavam ao laboratório em forma de hipóteses e, de lá, retornavam como procedimentos, controles e indicadores. Essa circulação de conhecimento — rara em países que segregam academia e indústria — é parte central de seu legado.
Sua leitura de mundo incorporou a modernização agrária e industrial do Brasil, a partir da cana: mecanização responsável, melhoramento varietal, fitossanidade, otimização de colheita, redução de perdas, qualidade do caldo, fermentação eficiente, boas práticas de destilação, uso de subprodutos, cogeração e, mais recentemente, o lugar do etanol e da bioeletricidade em uma matriz energética de baixo carbono.
Reconhecimento, prêmios e redes de influência
Ser membro honorário de sociedades técnicas, receber premiações históricas do setor e ser chamado de “Mestre” por ex-alunos e colegas decorre não só de títulos, mas de um traço humano: a disposição de ensinar e aprender todos os dias. Em auditórios, linhas de fermentação, casas de caldeira e estandes de feira, Stupiello era o mesmo: atento ao detalhe, respeitoso com o operador, exigente com o método, acessível aos jovens. A sua influência atravessa cursos técnicos, graduação, pós-graduação e formação corporativa — um capital social que sustenta o setor até hoje.
Vida pessoal: família, afetos e estilo
Viúvo de Maria Paschoal Stupiello, pai de Jaime e Maria da Graça e avô de Bruno e Gabriella, encontrava na família a fonte de equilíbrio. O cuidado com as palavras, o apreço pela urbanidade e a paciência de quem cultiva orquídeas aparecem em incontáveis relatos de amizade. Era firme nos princípios e suave no trato — combinação que torna líderes perenes.
Entre as amizades mais marcantes, destaca-se sua relação com Tomaz Caetano Cannavam Ripoli, companheiro de lutas acadêmicas, técnicas e institucionais. Ambos, cada qual em sua trajetória, construíram um legado comum de valorização da ciência aplicada, da formação de profissionais e da defesa do setor sucroenergético. Essa amizade extrapolava a esfera pessoal: representava uma aliança de visões e compromissos que ajudou a fortalecer o elo entre universidade, indústria e sociedade.
Política entendida como missão pública
Há quem restrinja “vida política” ao processo eleitoral. Stupiello demonstrou que política é, antes, o ofício de construir bens públicos: padrões técnicos, capital humano, governança de entidades, reputação internacional, segurança de processo, redução de perdas, confiança entre elos da cadeia, continuidade de políticas de Estado para a bioenergia. Ao liderar a STAB, dialogar com governos, agências reguladoras, universidades e empresas, praticou a boa política — aquela que cria estabilidade para inovar.
Legado e futuro: linha de transmissão do conhecimento
O legado de José Paulo Stupiello é uma linha de transmissão que conecta gerações. Ele nos ensinou que o setor sucroenergético prospera quando ciência aplicada, formação de pessoas e instituições fortes se encontram. Sua obra permanece nos manuais, nos artigos, nos protocolos de laboratório, na rotina das usinas e — sobretudo — na cabeça e no coração de quem aprendeu com ele o valor de medir, comparar, melhorar e compartilhar.
Esse legado também se entrelaça com o de Tomaz Caetano Cannavam Ripoli. Ambos simbolizam um tempo de pioneirismo e visão estratégica, no qual amizade, respeito e propósito se transformaram em frutos para toda a cadeia produtiva. Se Stupiello foi a voz técnica e institucional, Ripoli complementava com olhar de gestão e articulação, compondo uma dupla que marcou a história da cana e do etanol no Brasil.
Epílogo
Homenagear Stupiello não é um gesto de nostalgia, mas um compromisso com o futuro. No Brasil que busca produtividade sustentável e liderança climática, a bioenergia tem um papel decisivo. Para cumpri-lo, precisamos do método que ele nos legou: respeitar os dados; investir em gente; cuidar das instituições; transformar pesquisa em prática e unir campo, indústria e universidade.
Seus 90 anos foram vividos como serviço — à família, aos alunos, às usinas, à ESALQ e à STAB. Que a próxima geração receba esse bastão com a mesma sobriedade e entusiasmo, lembrando que, na cana-de-açúcar como na vida, excelência é hábito.
O agro não para!
Marco Lorenzzo Cunali Ripoli, Ph.D. é Engenheiro Agrônomo e Mestre em Máquinas Agrícolas pela ESALQ-USP e Doutor em Energia na Agricultura pela UNESP, fundador do “O Agro não Para” e diretor e proprietário da BIOENERGY Consultoria, diretor-consultor da PH Advisory Group, investidor em empresas e palestrante. Acesse www.marcoripoli.com
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Este artigo presta condolências à família e expressa gratidão de todo o ecossistema sucroenergético por uma vida dedicada ao conhecimento, às pessoas e às instituições