José R. Salvadori, Embrapa Trigo; Lenita J. Oliveira, Embrapa Soja; Gabriela L. Tonet, Embrapa Trigo
Esses insetos, devido a vários fatores, adquiriram importância na sojicultura nas últimas três décadas. Para minimizar os danos, é necessário conhecer os limites e as perspectivas de manejo
Denominam-se pragas-de-solo insetos e outros pequenos animais que vivem subterraneamente ou na superfície do solo e que se alimentam de partes vegetais localizadas nesses ambientes, danificando economicamente plantas cultivadas. Em sentido mais amplo, há situações em que também são consideradas pragas de solo espécies que apresentam estreita relação com o solo, como, por exemplo, aquelas que aí vivem grande parte do ciclo biológico ou no período em que causam danos a plantas cultivadas.
Evolução do problema
Insetos e outros animais desempenham funções específicas na cadeia alimentar e, em ambientes naturais, tendem a viver em equilíbrio populacional. A agricultura, por substituir a vegetação natural e diversificada por uma ou poucas espécies, a expansão de áreas cultivadas e as práticas de manejo de culturas (rotações, sucessões etc.), de controle fitossanitário (aplicação de inseticidas, herbicidas etc.) e de manejo de solo são atividades que interferem no balanço das populações de animais associados.
No Brasil, ao longo dos anos, as principais pragas da cultura de soja têm sido espécies associadas à parte aérea de plantas. Todavia, há cerca de duas décadas, pragas subterrâneas e associadas ao solo começaram a causar problemas mais frequentemente nos sistemas de produção de grãos. Ao se buscar a razão para o crescimento de problemas com pragas de solo em soja, impõe-se considerar, entre as possíveis causas, fatores como o avanço da cultura em áreas consideradas não tradicionais e alterações nos sistemas de produção, nos processos fitotécnicos e nos métodos de preparo de solo.
O cultivo de soja no Brasil tem se caracterizado por elevadas taxas de expansão, inicialmente no Sul e, mais recentemente, no Centro-Oeste e no Norte. Grandes extensões de áreas cultivadas com uma única espécie vegetal, em substituição a outras espécies vegetais cultivadas ou não, exercem forte pressão de seleção na composição qualitativa e quantitativa das populações de animais que se alimentam de plantas. Restrições de acesso a fontes naturais de alimento aumentam as possibilidades de que organismos fitófagos se adaptem ao ambiente modificado, podendo até mesmo atingir níveis economicamente importantes.
As pragas de solo são particularmente afetadas tanto pelo preparo convencional do solo (aração, gradagem etc.) como pelos chamados sistemas conservacionistas (plantio direto, cultivo mínimo etc). Admite-se que o plantio direto tem determinado alterações nas populações de animais nocivos e benéficos em sistemas de produção de grãos. O não revolvimento do solo pode favorecer o crescimento populacional de espécies tipicamente subterrâneas, que vivem na área, de mobilidade restrita e de ciclo de vida relativamente longo.
Da mesma forma, a presença de palha na superfície do solo, uma das características do sistema plantio direto, interfere nas condições microclimáticas e, por conseguinte, na fauna associada. Nesse caso, espécies de superfície do solo são as mais atingidas, podendo o efeito da palha ser positivo ou negativo para elas. Outros processos muito comuns em plantio direto, como a rotação de culturas e a dessecação química, também exercem efeito sobre a fauna edafícola.
Dependendo das culturas empregadas em rotações/sucessões e da habilidade das espécies animais em se alimentar de diferentes plantas hospedeiras, pode haver favorecimento ou desfavorecimento ao aparecimento de pragas. De modo geral, o plantio de safrinhas tem levado ao surgimento de problemas de pragas. O balanço da fauna também pode ser alterado pelo emprego de herbicidas químicos antes da semeadura, seja para controlar plantas daninhas, seja para dessecar plantas cultivadas para proteção do solo e produção de palha, uma vez que suprime o alimento de insetos e de outros herbívoros.
Principais pragas de solo em soja
Até a década de 1970, apenas a broca-do-colo (Elasmopalpus lignosellus) era citada como praga de solo preocupante em soja. O bicudo ou tamanduá-da-soja (Sternechus subsignatus) e a cochonilha-da-raiz (Pseudococcus sp.) também eram citados, mas como pragas que ocorriam esporadicamente.
Atualmente, mais de duas dezenas de espécies de pragas de solo (conceito amplo) são citadas em soja. Algumas caracterizam-se por serem pragas de fato ou pelo potencial de alcançarem, ocasional ou localizadamente, essa condição, como, por exemplo, o tamanduá-da-soja (S. subsignatus); os percevejos castanhos (Scaptocoris castanea e Atarsocoris brachiariae); os corós (Phyllophaga cuyabana, Phyllophaga triticophaga, Diloboderus abderus, Liogenys sp., Plectris sp. e outras espécies ainda não identificadas); os percevejos que agem na superfície do solo, como os percevejos-barriga-verde (Dichelops spp.); os grilos (Gryllus assimilis e Anurogryllus mutycus), lesmas (Deroceras sp., Limax sp., Phyllocaulis sp. e Sarasinula sp.); caracóis (Bulimulus sp.) e piolhos-de-cobra (Julus sp. e Plusioporus sp.).
Felizmente, a maioria dessas espécies, além de outras, como é o caso da lagarta-rosca (Agrotis ipsilon), do cascudinho-da-soja (Myochrous armatus), das larvas-alfinete (Diabrotica speciosa e Cerotoma arcuata tingomariana), dos gorgulhos-do-solo (Pantomorus spp.), da larva-angorá (Astylus variegatus), das larvas-arame (Conoderus scalaris e C. stigmosus), do ligeirinho e da falsa-larva-arame (Blapstinus punctulatus), do torrãozinho (Aracanthus mourei) e da bicheira-da-semente (Delia platura), caracterizam-se pela eventualidade com que podem causar problemas à cultura de soja.
O tamanduá-da-soja é, sem dúvida, um dos principais e mais antigos problemas de pragas associados ao solo, em soja. Embora não se enquadre como praga de solo típica, uma vez que danifica a parte aérea de plantas, tem estreita relação com o solo, vivendo subterraneamente mais de seis meses, como larva madura hibernante e pupa, no Sul do Brasil. Apresenta ampla distribuição geográfica ocorrendo como praga de soja do Rio Grande do Sul à Bahia. A evolução dessa espécie como praga e, provavelmente, sua dispersão geográfica, estão relacionadas à expansão da soja em monocultivo e ao sistema plantio direto.
O complexo de corós rizófagos associados à soja, com espécies já identificadas e outras ainda por identificar, constitui um problema mais recente. Os corós são larvas tipicamente subterrâneas e polífagas (alimentam-se de diferentes espécies vegetais). As espécies de corós ocorrentes variam com a região e se adaptaram à soja e a outras culturas que ocuparam o lugar de seus hospedeiros originais. Aliado a isso, o sistema plantio direto tem sido outro fator determinante para o crescimento populacional de certas espécies de corós em plantas de lavoura. O coró-da-soja (P. cuyabana), descrito originalmente a partir de exemplares coletados em Cuiabá - MT, é a espécie predominante no oeste e no centro-oeste do Paraná desde 1985. Também foi registrado, causando danos em soja, em Mato Grosso do Sul, por C. J. Ávila e S. A. Gomez (Embrapa Agropecuária Oeste). Sua incidência parece não estar relacionada ao manejo de solo, pois tem causado problemas tanto em sistemas convencionais de semeadura como em plantio direto. No Sul do país, o coró-do-trigo (P. triticophaga), principalmente, e o coró-da-pastagem (D.abderus), destrutivas pragas em trigo e em outros cereais de inverno, podem causar danos em soja. Embora o crescimento populacional de corós seja favorecido pelo não revolvimento do solo, a incidência do coró-do-trigo independe do tipo de manejo de solo, enquanto o coró-da-pastagem está estreitamente relacionado ao sistema plantio. Outras espécies de corós ainda pouco estudadas têm causado danos em soja, desde o Sul do país até o Cerrado, como Liogenys sp. em Goiás, Plectris sp. no norte do Paraná e uma espécie ainda não identificada no Rio Grande do Sul.
Os percevejos-castanhos-da-raiz, que causam danos à soja e a diversas outras culturas, como milho, algodão, arroz e pastagens, são insetos subterrâneos típicos, cujas ninfas e adultos sugam as raízes de plantas. S. castanea é uma espécie conhecida há mais tempo e de ampla distribuição geográfica, ao passo que A. brachiariae foi descrita mais recentemente. A ocorrência de danos econômicos causados por esses percevejos, em lavouras e em pastagens, cresceu nos anos 90. Em soja, em que a espécie mais freqüente é S. castanea, constituem grande problema, podendo provocar perdas totais no rendimento, principalmente no Cerrado (GO, MG, MS, MT, SP e TO), sendo que focos isolados foram registrados no norte do Paraná. Têm ocorrido em soja, tanto em plantio direto como sob sistemas convencionais de preparo de solo.
Percevejos-barriga-verde (Dichelops spp.), insetos de ocorrência secundária como pragas da parte aérea de soja, têm sido encontrados desde o Rio Grande do Sul até Mato Grosso, sugando plântulas de soja, de milho e de trigo, a partir da década de 1990. Problemas têm ocorrido mais em milho (PR e MS) e em trigo (PR) do que em soja. Não se caracterizam como pragas típicas de solo, uma vez que vivem na superfície deste, sob a palhada, e atacam o caule de plantas novas e cotilédones de soja. De acordo com estudos realizados na Embrapa Soja, por A. R. Panizzi e V. R. Chocorosqui, a presença de populações elevadas desses percevejos logo após a emergência das culturas pode ser considerada uma mudança de hábitos dos insetos, relacionada ao crescimento do cultivo de safrinhas e ao sistema plantio direto. As safrinhas disponibilizam alimento de forma permanente, desobrigando os insetos de buscarem outras plantas nativas na entressafra, e a palha gerada no sistema plantio direto é usada como abrigo para repouso hibernal e para sobrevivência.
Os grilos são insetos onívoros, de ampla distribuição geográfica, considerados pragas de pequenas culturas, de plantas hortícolas e de plantas ornamentais. Em lavouras graníferas, apenas recentemente têm sido citados como pragas eventuais de superfície do solo, especialmente em soja e em milho, no Rio Grande do Sul. As espécies que ocorrem são o grilo-preto ou grilo-comum (G. assimilis), que vive em ambientes úmidos, sob restos culturais, e o grilo-marrom (A. muticus), que vive em galerias, no solo. Ambos têm hábitos noturnos e cortam plântulas ao nível do solo e nas primeiras folhas, retardando o desenvolvimento vegetal. Os danos são mais críticos logo após a emergência de plantas, principalmente em períodos de estiagem e de altas temperaturas. O grilo-marrom é o mais comum em lavouras, e danos têm sido observados sob sistema plantio direto. Ninfas e adultos armazenam partes vegetais cortadas dentro de galerias. Provavelmente, a ocorrência em escala de praga no sistema plantio direto resulta não só do não revolvimento do solo, mas também da falta de alimento verde alternativo, em decorrência da eliminação de outros vegetais (dessecação química em pré-semeadura), prática muito comum no sistema.
Além dos insetos, outras classes de animais têm ocorrido em lavouras de soja de maneira crescente nos últimos anos (década de 1990), como os diplópodes (piolhos-de-cobra ou milípodes) e os gastrópodes (lesmas e caracóis).
Os piolhos-de-cobra alimentam-se, normalmente, de matéria vegetal morta e, ultimamente, têm sido encontrados em lavouras com abundância de palha e sem preparo de solo. A espécie Julus sp. tem sido muito freqüente, e a ocorrência de Plusioporus setifer foi constatada por N. L. Domiciano (IAPAR), causando danos em soja no norte do Paraná. Piolhos-de-cobra vivem enterrados no solo, principalmente no sulco de semeadura, ou sob a palha. Têm hábitos noturnos e podem danificar sementes e parte vegetais subterrâneas ou próximas ao solo, podendo provocar murcha e morte de plântulas; os danos são maiores em períodos de estiagem.
Lesmas e caracóis são moluscos que vivem em ambientes úmidos e de temperaturas amenas. Abrigam-se sob torrões, restos vegetais e outros materiais existentes na superfície do solo. Eventualmente, podem penetrar no solo, a pequena profundidade, através de aberturas naturais. Apresentam hábitos noturnos, mas também podem ser ativos em dias nublados. Atacam, normalmente, a parte aérea de plantas, mas é em vegetais recém-emergidos que apresentam maior potencial nocivo, reduzindo a população de plantas. A presença de lesmas e de caracóis em uma área é denunciada pelo rastro de muco que deixam ao se deslocarem no solo e sobre as plantas. São considerados pragas importantes em hortas, jardins e estufas, porém, mais recentemente, têm ocorrido em lavouras extensivas, como soja, feijão, milho e trigo, em áreas sob plantio direto com abundância de palha na superfície do solo e em semeaduras após o cultivo de certas espécies, como, por exemplo, nabo-forrageiro. Danos severos em soja, causados pela espécie Sarasinula linguaeformis, foram constatados no oeste de Santa Catarina, por J. M. Milanez e L. A. Chiaradia (Epagri - Chapecó), em 1995.
Limitações e perspectivas de manejo
O manejo integrado de pragas (MIP) difere de medidas unilaterais de controle, por levar em consideração uma série de conhecimentos básicos, de natureza bioecológica, além de procurar a combinação de diferentes estratégias de controle disponíveis. A identificação de espécies e a geração de conhecimentos sobre biologia, flutuação populacional, níveis de dano e técnicas de amostragem de pragas são imprescindíveis para a prática do MIP.
Exceto em algumas situações específicas em que a pesquisa está mais adiantada, como no caso de S. subsignatus, S. castanea, P. cuyabana, P. triticophaga e D. abderus, a falta de conhecimento constitui a principal limitação para o manejo de pragas de solo na cultura de soja.
Nos últimos quinze anos, os recursos humanos e materiais investidos em pesquisa sobre pragas de solo aumentaram consideravelmente. A Reunião Sul-brasileira sobre Pragas de Solo, realizada em sua primeira edição, em 1988, pela Embrapa Trigo e em sua oitava edição, em 2001, pela Embrapa Soja, evoluiu expressivamente tanto em número como em qualidade dos trabalhos apresentados. Em fóruns não específicos, como o Congresso Brasileiro de Entomologia, seminários de plantio direto e reuniões de pesquisa ou congressos de soja, de trigo e de milho, o tema pragas de solo conquistou espaço definitivamente.
Isso é pouco, porém, em relação à complexidade dos problemas já existentes e dos problemas emergentes. A diversidade de espécies de pragas reais e potenciais e a amplitude geográfica onde se cultiva a soja e se adota o sistema plantio direto no Brasil, bem como as dificuldades inerentes ao estudo e ao controle de pragas de solo, exigem especial racionalização de esforços e investimentos crescentes e regionalizados. Não apenas na cultura de soja, mas de modo geral sempre que houver problemas de praga de solo, e tanto ou mais do que para outros tipos de pragas, a busca de soluções deve ter enfoque multilateral, dentro dos preceitos de MIP. Um dos grande desafios, por exemplo, é resolver os problemas em plantio direto sem necessidade de abandonar o sistema, que tantos benefícios tem proporcionado em termos de meio ambiente e à agricultura como um todo. A prioridade é desenvolver conhecimentos que permitam o convívio com as novas situações problemáticas e métodos de controle compatíveis com sistemas de produção sustentáveis. Nesse particular, além do aperfeiçoamento dos métodos de controle existentes, com o uso de inseticidas e de meios de aplicação mais específicos e seletivos, abrem-se perspectivas quase que ilimitadas para o desenvolvimento de alternativas não convencionais, como plantas resistentes, feromônios e controle biológico.