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O copo “meio cheio”


Lauro Eduardo De Russi

Durante boa parte da minha vida profissional fui condenado por vários chefes por criticar políticas, decisões ou situações erradas nas empresas onde trabalhei. Diziam-me: "você precisa ver as coisas positivas também".

No ano passado, quando eclodiram vários escândalos de corrupção, e em meio às incertezas sobre o futuro do Brasil quanto a seus valores morais e éticos, recebi inúmeros e-mails sobre o tema, mas um deles, extremamente consolador, pedia-me que olhasse também para o que o Brasil tem de melhor. Seu conteúdo era um conjunto de pontos positivos que nosso país possui: temos os garçons mais gentis do mundo, possuímos um dos sistemas mais evoluídos do planeta em votação eletrônica, não temos vulcões, furacões e terremotos, entre outros.

Certa vez, numa palestra profissional, o condutor do trabalho apresentou a "história do copo meio cheio", que na ocasião achei interessantíssima, tanto que já a utilizei inúmeras vezes em apresentações e treinamentos.

Entretanto, com a experiência da vida e a educação formal vamos nos tornando cada vez mais críticos, e comecei a repensar o conteúdo dessa "história", e a conclusão a que cheguei foi que pedir aos outros que vejam sempre o copo "meio cheio" é também uma forma, ainda que sutil, de tolher a capacidade que as pessoas tem (nem todas, infelizmente) de discernirem entre o certo e o errado, estimulando-as a ter sempre uma visão positiva das coisas, para que, no fundo, estas "compensem" as ruins ou péssimas, fazendo-as esquecê-las temporária ou definitivamente.

Para ilustrar meu pensamento e minha proposta, quero citar apenas alguns exemplos paradoxais recentes e altamente preocupantes: o brutal assassinato de um menino no Rio de Janeiro, que provocou muito choro, lamentação e protesto, confirmando nosso altíssimo índice de criminalidade, e logo em seguida a maior festa brasileira, da qual muito nos orgulhamos: o Carnaval, que, com certeza, deve ter provocado muitas manifestações de alegria e até feito muita gente esquecer o caso do menino.

Então, a pergunta: vamos continuar dizendo: "ainda bem que temos o Carnaval para nos alegrar um pouco, ou vamos assumir seriamente o desafio de equacionar o problema da criminalidade, investindo em educação para solucioná-lo?

O programa Big Brother Brasil, encenado por "atores" e "atrizes" predominantemente de baixa formação moral e educacional, é um programa assistido e adorado por muita gente, ainda que muitos aleguem que só o assistem, como justificativa ou desculpa (pelo quê?) para passar o tempo, ignorando que estudos sérios da Psicologia mostram que podemos, com grande segurança, associar o que se assiste ou se ouve ao nosso conjunto de valores morais e educacionais, isto é, quem gosta, mesmo que "só por lazer", tem uma certa identidade com o que está assistindo e curtindo. O contraponto é a recente divulgação dos lamentáveis índices de educação escolar básica e fundamental mostrando um retrocesso na nossa educação nos últimos anos.

Agora, a pergunta: vamos banir da televisão programas desse tipo, recheado de maus exemplos e mensagens enganosas e sórdidas (como a que basta usar o sexo e alguns gritos e palavrões para se tornar vencedor), ou vamos continuar utilizando a "teoria do copo meio cheio", dizendo que "ainda bem que existe esse programa para rirmos ou pouco e aliviarmos o estresse do dia-a-dia", ou ainda "quem não gosta que mude de canal", resposta típica de quem não sabe como resolver o problema, não quer assumir compromisso algum com sua solução ou, o que é pior, já está conformado com ele.

Resido em uma cidade onde a Prefeitura, há anos atrás, construiu uma pista de "Cooper" paralela a uma avenida plana e bastante movimentada, e certa vez, caminhando ao lado do prefeito, meu vizinho na época, disse-lhe que alguns motoristas estavam abusando da velocidade nessa avenida, transformando-a, principalmente nos finais de semana, em uma pista de corrida, e, claro, colocando em risco as próprias vidas e a segurança de todas as pessoas, crianças e adultos, que em grande número praticam exercícios físicos no local, de dia e à noite. E, na seqüência, fiz-lhe a seguinte pergunta: "não seria o caso de se colocar lombadas para evitar o excesso de velocidade na avenida?" A resposta dada pelo prefeito não me surpreendeu, por causa de seu excelente nível de formação educacional, mas me marcou pela profundidade de conteúdo e seriedade da proposta: "prefiro lançar uma campanha ou um programa de conscientização dos motoristas a colocar obstáculos na avenida".

Pergunto: vamos continuar construindo lombadas e vendo o copo "meio cheio", já que nunca houve uma morte com os excessos de velocidade na avenida, ou vamos educar os motoristas para que não corram mais?

P'ra fechar: há uma frase muito propagada na televisão que diz: "o bom do Brasil é o brasileiro".

Aí pergunto: não seria melhor se a frase pudesse ser: "O bom do Brasil é que o brasileiro é educado"?

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