O frei austríaco Gregor Mendel foi o que hoje é conceituado como um cientista cidadão. Em seu convento, aproveitava o tempo livre para realizar experimentos em meados do século XIX, nos quais cruzou cerca de 28.000 flores de ervilhas a fim de saciar sua curiosidade e entender como as características eram herdadas pelas gerações futuras. Embora o conceito de genes não existisse naquela época, Mendel concluiu que as plantas transmitiam fatores hereditários que controlavam as características da prole. Entre suas conclusões estava a herança de versões "dominantes" ou "recessivas" do que mais tarde veio a ser denominado como alelos de genes.
Essas leis são: I) a Lei da Dominância e Uniformidade, que afirma que alelos dominantes mascaram os recessivos; II) a Lei da Segregação, onde os alelos para cada gene se separam durante a formação dos gametas; e III) a Lei da Segregação Independente ou da Distribuição Independente, propondo que os alelos de diferentes genes são segregados de forma independente uns dos outros. Leia mais sobre as leis de Mendel em bit.ly/48fKTun.
Já se passaram 160 anos desde que Mendel relatou seus estudos sobre genética e hereditariedade, usando características de plantas de ervilhas (Pisum sativum), tais como forma e cor de sementes e vagens. Foram sete características que Mendel estudou e, no entanto, até recentemente ainda não haviam sido identificados os genes que controlam três dessas características.
Porém, em 23/04/25, uma publicação na revista Nature, subscrita pelo grupo do prof. Cong Feng (bit.ly/4oX2uhS), elucidou essa obscuridade histórica. Isto foi possível porque a equipe do prof. Kreplak havia publicado na mesma revista Nature, em 2019, um genoma de referência para a ervilha (bit.ly/3XWfVCI). Essa sequência faz parte do método científico, em que os avanços são obtidos por contribuições diversas, ou seja, cada cientista ou equipe coloca seu “tijolinho” em uma construção coletiva, que redunda em inúmeros avanços de conhecimento e tecnológicos.
Ferramentas modernas
As atuais ferramentas de sequenciamento, associadas a recursos de bioinformática, avançaram o suficiente para permitir identificar os três genes restantes. Usando a Unidade de Recursos de Germoplasma do John Innes Centre (Norwich, Reino Unido) — que abriga mais de 3.500 variantes de ervilha – associado aos conjuntos de dados gnômicos disponíveis publicamente, a equipe do prof. Cong sequenciou cerca de 700 genomas de ervilha. Estes continham aproximadamente 155 milhões de polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs), diferenças de um único par de bases nas sequências de DNA, em comparação com o genoma padrão (de referência) de ervilha.
Usando vários métodos, incluindo o melhoramento seletivo de plantas de ervilha e estudos de associação genômica ampla, que investigam cada genoma em busca de diferenças no número e na localização de SNPs, o grupo identificou os genes ligados às três características restantes. Por esse caminho, os pesquisadores descobriram que a cor da vagem da ervilha é controlada por um gene que interrompe a biossíntese da clorofila, resultando em vagens verdes ou amarelas. Eles também identificaram dois genes que ajudam a controlar o formato da vagem, induzindo a interrupção do espessamento da parede celular na planta. E determinaram que uma deleção no código genético, em um ponto específico de outro gene, pode causar alterações na ramificação ou no agrupamento das flores nas plantas — um processo conhecido como fascinação.
Ciência colaborativa, o paradigma moderno
Esse resultado, que demorou 160 anos para ser completado, mostrou a importância da colaboração em ciência. Se o trabalho introspectivo e solitário de Mendel pode ser alcunhado de ciência cidadã, a abordagem utilizada para identificar os três genes faltantes, entre os sete utilizados por Mendel, pode ser chamada de ciência colaborativa.
Equipes multidisciplinares e conexões entre grupos de pesquisa dominam o labor científico na terceira década do século XXI. Digamos que o esclarecimento final partiu de uma abordagem usando “o quadrado de Punnett”, desenvolvido pelo geneticista britânico Reginald Punnet, no início do século passado. Trata-se de um diagrama didático que prevê a probabilidade de um descendente herdar um genótipo e fenótipo específicos, a partir do cruzamento entre dois parentais. A tabela mostra todas as combinações possíveis de alelos de cada progenitor, com os gametas de um progenitor listados na parte superior e os gametas do outro progenitor na lateral. Cada quadrado dentro do diagrama representa um genótipo possível para o descendente, permitindo calcular as probabilidades associadas à sua ocorrência.
Na sequência era necessário dispor de um genoma de referência da ervilha, o que foi possível com o trabalho da equipe do prof. Kreplak. Usando as modernas ferramentas que permitem escrutinar os escaninhos do DNA, e dispondo de um genoma referencial e de um diagrama básico, que associava os genes às três características restantes, foi possível desvendar os genes faltantes. Mas, não apenas isso, porque no decurso da investigação, a equipe do prof. Feng analisou outras 72 características da ervilha relevantes para a agricultura, como genes associados ao tamanho da vagem, à produtividade da planta, ao teor de proteína da semente e os que conferem resistência a doenças.
É assim que a ciência avança nos tempos atuais, o que ressalta a importância das publicações científicas, dos relacionamentos entre cientistas e, em especial, o aprendizado e o intercâmbio decorrente da participação ativa em congressos e outros eventos científicos, que desembocam no desenvolvimento tecnológico que beneficia toda a sociedade.
O autor é engenheiro agrônomo, membro do Conselho Científico Agro Sustentável e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.