
No momento em que o governo federal apresenta ao Congresso uma nova
lei sobre a Biossegurança, no afã de regulamentar a biotecnologia e a transgenia
no Brasil, necessário se faz avançar alguns elementos decisivos ao debate. Com
isto, talvez seja possível racionalizar a questão, evitando que a ideologia e os
interesses políticos superem as questões científicas e econômicas.
Neste sentido, mister se faz destacar que a biotecnologia trata da
tecnologia da vida. Ou seja, na prática pode alterar a estrutura dos seres vivos. Neste contexto, surgiram em nosso meio novos termos, tais como transgênicos,
OGMs (organismos geneticamente modificados) e outros. O que realmente eles
significam? Em primeiro lugar, todo transgênico é um OGM mas nem todo OGM é
um transgênico. Em segundo lugar, isto ocorre porque transgênico é o organismo
cujo material genético (genoma) foi alterado, por meio da tecnologia do DNA
recombinante, pela introdução de fragmentos de DNA externos, ou seja, genes
provenientes de organismos de espécie diferente da espécie do organismo alvo.
Esses genes externos, que são inseridos artificial e intencionalmente no genoma
do organismo alvo, são denominados transgenes, e têm a capacidade de conferir
ao organismo determinadas características de interesse. É o caso da soja. Em
terceiro lugar, os OGMs podem ser transgênicos ou não. Se o organismo alvo for
modificado geneticamente, por um ou mais genes provenientes de um organismo
da mesma espécie do organismo alvo, este é considerado um OGM e não um
transgênico. É o caso do tomate longa vida.
Na atual Lei de Biossegurança brasileira, e que deverá ser modificada pela
nova proposta, não há definição para o produto transgênico. Somente a expressão
OGM é definida como “todo organismo cujo material genético (DNA/RNA) tenha
sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética”. Além disso, ela
complica ainda mais as coisas pois apresenta um novo termo: OVM (organismos
vivos modificados). O mesmo é definido como sendo "...qualquer organismo vivo
que possua uma combinação nova de material genético, que tenha sido obtida
mediante técnicas de ácido nucléico in vitro, incluindo-se o DNA recombinante e a
introdução direta de ácido nucléico em células ou organelas.".2
Em termos mundiais, na área vegetal os OGMs já possuem pelo menos três
gerações. A primeira trata daqueles organismos com características agronômicas
de resistência a herbicidas, pestes e vírus. Os primeiros vegetais desta categoria
apareceram em 1980 e hoje correspondem a maioria aprovada e comercializada
no mundo (é o caso da soja, do milho, colza, tabaco etc....). A segunda reúne as
plantas cujas características nutricionais foram melhoradas qualitativa e
quantitativamente (menos óleo, mais proteína etc...). São poucas as plantas já
autorizadas para comercialização. Enfim, a terceira reúne as plantas destinadas à
síntese de produtos especiais, visando a cura de doenças nos seres humanos e a
geração de vacinas, hormônios, anticorpos etc... (é o caso do arroz japonês, rico
em insulina para curar o diabetes, que em dois anos estará no mercado, assim
como a soja transgênica pesquisada, neste momento, pela Embrapa e capaz de
combater o câncer de mama com o anticorpo SCFU).
No reino animal, dentre as diversas práticas existentes, com algumas já
comercializadas, existem pesquisas com peixes geneticamente modificados
visando aumentar a rapidez de seu crescimento em 25% em relação aos demais.
Produção de frango com menor tamanho, porém, com o mesmo teor de carne (o
mesmo ocuparia menos espaço físico, com menos consumo de ração, garantindo
o mesmo ganho por quilo vivo etc....) Tem-se a bactéria transgênica para a
produção de insulina humana, largamente utilizada no mundo todo. Tem-se
igualmente o uso de uma bactéria transgênica (Escherichia coli), a qual gera a
produção de uma enzima chamada quimosina, empregada na formação do coalho
para a produção de queijos. Tem-se ainda uma nova geração de bactérias que
transformam materiais tóxicos em substâncias menos tóxicas ou até inofensivas.
Não há dúvida que tais produtos, assim que confirmados cientificamente,
irão valer muito mais no mercado mundial em detrimento dos chamados
convencionais. No caso do anticorpo SCFU, o mesmo é vendido no mercado
nacional a R$ 1.000,00 o grama, sendo extraído de células humanas clonadas.
Um hectare de soja transgênica pode produzir 4 quilos do anticorpo. Isto significa
aproximadamente R$ 4 milhões por hectare pelos preços deste final de outubro de
2003. Além disso, tal produção, na prática, permitirá derrubar os preços do
medicamento, até popularizá-lo, favorecendo ao conjunto da população,
especialmente os mais pobres.3 Enquanto isto, o Brasil, enredado por um debate
estéril, perde tempo e não consegue nem mesmo decidir sobre a transgenia
referente a primeira geração. Com o agravante de avançar regras que chegam a
impedir a ciência de continuar suas pesquisas na área.
Este medo do novo em alguns setores da sociedade, é natural no ser
humano, porém, extremamente nocivo pois geralmente retrógrado (o caso do
movimento contra a vacina da varíola, no início do século XX no Brasil, é um dos
clássicos exemplos neste sentido). Assim, cabe destacar alguns dos reais
benefícios e possíveis riscos dos OGMs.
Dentre os benefícios, salientam-se: a biorremediação (utilização de
microorganismos para tratamento de locais contaminados por produtos
agroquímicos, metais pesados, resíduos da indústria de petróleo etc...); a
tolerância das sementes à condições climáticas adversas e a solos inapropriados;
o aumento da produtividade agrícola (menos ataque de pragas, menos inço na
colheita....); a redução de custos no plantio agrícola (menos defensivos, menos
uso de combustível, menos lixo industrial, eliminação de inços, menos
contaminação de solos, pessoas e rios...); as sementes com características
melhoradas qualitativa e quantitativamente (óleos mais nutritivos, menos gordura
saturada, café com menos cafeína, cenoura crocante mesmo depois de cortada
etc....); a síntese de fármacos e vacinas (interferon-alfa-2b, interferon-beta e o
fator anti hemofílico, empregados no tratamento da leucemia, esclerose múltipla e
hemofilia A; o hormônio de crescimento humano somatotropina, já usado há anos
em vacas leiteiras para aumentar a produtividade; além de vários outros produtos
usados para tratamento de doenças circulatórias e de vários tipos de câncer); a
síntese de plástico, através da produção de plástico biodegradável, a partir de
polímeros de soja e de fibra de cana-de-açúcar, com a participação de bactérias
transgênicas etc...
Quanto aos riscos, que merecem atenção da pesquisa no sentido de
eliminá-los ou impedi-los de ocorrer, temos: a possibilidade de uso da tecnologia
terminator (consiste na introdução de genes no genoma de plantas de interesse,
capazes de tornar estéril à segunda geração de sementes); a possibilidade de uso
da tecnologia do traitor (consiste em alterar geneticamente uma planta para que a
expressão de determinadas proteínas, no vegetal, esteja condicionada à aplicação
de uma substância química capaz de ativar ou desativar características
específicas da planta). Com isso, as multinacionais do agronegócio poderiam
aumentar a dependência dos produtores em relação a elas (há o receio de que a
soja em relação ao glifosato se insira neste contexto); eliminação de insetos e
microorganismos do ecossistema (devido à exposição desses a substâncias
tóxicas produzidas por determinadas plantas); a “contaminação” de culturas
convencionais (a soja não tem este risco, a tal ponto que a Embrapa já divulgou a
descoberta de uma semente transgênica de soja para plantio misto); gerar
superpragas resistentes a herbicidas e inseticidas em função dos cruzamentos
genéticos; a geração de substâncias desconhecidas, nocivas ao meio ambiente; a
oligopolização do mercado de sementes OGMs; o aumento do preço final do
produto devido a exigência de rotulagem, pagamento de royalties etc...
Na prática, após sete anos de plantio no Rio Grande do Sul e parte do
Brasil, a soja transgênica, por exemplo, já comprovou que os aspectos positivos
superam largamente eventuais aspectos negativos, até agora inexistentes na
prática. E, tal realidade se estende para as demais culturas, na medida em que a
área mundial plantada com OGMs, para comercialização, pulou de 1,7 milhão de
hectares em 1996, para 52,6 milhões em 2002, calculando-se em 56 milhões de
hectares esta área em 2003. Ou seja, em sete anos a área mundial cresceu 50
vezes. O produto mais semeado é a soja, seguido do algodão, do milho, da colza
e hortigranjeiros.
Hoje, a soja é semeada em cerca de 80% da área nos EUA, 100% na
Argentina, cerca de 50% no Brasil (a partir da liberação), sendo praticamente
100% no Rio Grande do Sul e oeste catarinense; e largamente na China.
Cerca de metade da população mundial (3 bilhões de pessoas) consomem
já há anos produtos oriundos de OGMs, diretamente ou indiretamente. Então,
porque determinados países, especialmente alguns na União Européia e o Japão,
são freqüentemente citados como contrários ao consumo de transgênicos?
Em primeiro lugar, em boa parte destas regiões a população não faz
distinção entre os produtos convencionais e transgênicos, não havendo sequer o
debate. Mesmo porque a própria ciência nestas regiões desenvolve inúmeros
experimentos transgênicos, muitos comprovadamente positivos e já em fase de
comercialização. Assim, para a população, o que interessa é poder consumir um
produto barato, nutritivo, aprovado cientificamente e condizente com a renda
existente.
Em segundo lugar, a resistência, além de ser minoritária, se deve
especialmente aos seguintes fatores: o lado político encontrou um meio de criar
um protecionismo comercial vis- à-vis aos EUA, interpondo o fato de os produtos
serem OGMs para bloquear o comércio dos mesmos, quando necessário e
satisfatório aos interesses econômicos, especialmente no caso da União Européia;
a enorme desinformação, lá também, sobre os produtos transgênicos e os
avanços obtidos pela ciência nesta área; desinformação esta que permitiu
confundir as pessoas e misturar casos totalmente diferentes (sangue contaminado
pela AIDS, dioxina nas rações para frango e doença da vaca louca) com a
transgenia, comparando a mesma como algo possível de causar problemas da
mesma grandeza ao ser humano; e o assunto ganhou destaque em função de
uma jogada de marketing, liderada pela rede Carrefour (França), que viu no
mesmo a possibilidade de se diferenciar de seus concorrentes (hoje praticamente
não se fala mais nisto, aqui e na França).
Paralelamente a isto, a prática mostrou enormes contradições nestas
posturas. Por um lado, parte dos europeus gostariam de obter preferencialmente o
produto convencional, porém, não querem pagar um adicional de preço compatível
com o custo de manter uma cadeia livre de soja transgênica por parte do produtor.
No máximo teriam aceito pagar até 5% a mais quando os produtores acenaram
com a necessidade de 30% a mais sobre o preço de Chicago. Ora, se é tão
importante obter um produto supostamente diferenciado, natural que se pague o
preço pelo mesmo. A negativa demonstra que o mercado consumidor não é tão
contrário ao produto transgênico. Ou seja, os produtos orgânicos e convencionais
se constituem efetivamente apenas num nicho de mercado, em torno dos mais
abastados. A tal ponto que em todas as experiências práticas efetuadas pelos
supermercados europeus, inclusive na França, a população consome os produtos
OGMs, mesmo informada, desde que o preço seja conveniente. Portanto, tal
postura não é apenas uma característica de países subdesenvolvidos. Além disso,
diante da importância científica e comercial do fato, as pesquisas na área dos
OGMs estão avançadas nas regiões supostamente reticentes, com centenas de
experimentos ocorrendo na União Européia e no Japão, reforçando,
aparentemente a lógica do "faça o que eu digo mas não faça o que eu faço".
Enfim, o mercado mundial absorve cada vez mais os produtos OGMs na medida
em que a ciência desmistifica estes produtos. A prova está nas importações de
soja (grão e farelo) realizadas pela União Européia e Japão.
Considerando-se o ano de 2002/03 (outubro a setembro), temos que as
importações de soja em grão e farelo (ainda dados provisórios), por parte da
União Européia, teriam chegado a 17,8 e 19,2 milhões de toneladas
respectivamente. A origem deste dois produtos foi na sua grande maioria junto a
países produtores de soja transgênica. No caso do grão de soja, 50,5% saiu do
Brasil, outros 40,6% dos EUA, 4,4% da Argentina e 3,3% do Paraguai. Quanto ao
farelo, 49,7% foi originário da Argentina, outros 47,2% do Brasil, e 2,7% dos EUA.
Por sua vez, o Japão, no mesmo ano, importou 5,17 milhões de toneladas de
grãos de soja e 970.000 toneladas de farelo de soja. No caso do grão, 75,8% são
importados dos EUA, outros 16,1% do Brasil, 2,7% da China, 1,4% do Paraguai e
0,5% da Argentina. Quanto ao farelo de soja, 21% se originam nos EUA e outros
63,1% na China.4 Em síntese, tanto os europeus quanto os japoneses importaram
neste último ano comercial grande parte de sua soja de países fortemente
produtores de grãos transgênicos.
Desta forma, os mitos criados em torno do assunto foram derrubados em
sua grande maioria. No entanto, o Brasil se atrasou muito no processo. Por um
lado, porque a ideologia dominou o debate sobre o assunto. Por outro lado,
porque o governo titubeou durante anos, não definindo as regras e leis e ficando a
mercê de decisões judiciais morosas, as quais paralisaram o andamento das
questões, favorecendo as posições contrárias à transgenia e aos OGMs. Além
disso, as decisões judiciais seguidamente deixaram dúvidas. Por fim, muitos
organismos contrários, inclusive muitas ONGs, passaram a agir contra, tendo
como objetivo intrínseco atrasar a pesquisa no Brasil e a competitividade da soja e
do agronegócios em nosso país. Afinal, há muitos interesses em jogo.
Nestas condições, os produtores, pressionados pelo mercado a buscarem
constantes aumentos na rentabilidade de suas atividades, sob pena de não se
viabilizarem, avançaram a revelia da lei. Afinal, os ganhos chegam a mais de R$
240,00 por hectare plantado com soja transgênica sobre a convencional
(considerando apenas a aplicação de herbicida). Ao mesmo tempo, apesar do
esforço de alguns institutos de defesa do consumidor, na prática a grande maioria
destes consumidores não se importa em consumir os produtos OGMs.
Paralelamente, os organismos de pesquisa públicos e privados, mesmo diante de
adversidades até legais, insistiram em manter suas pesquisas. Graças a eles,
talvez o Brasil consiga, finalmente, recuperar o tempo perdido na medida em que
for capaz de construir uma Lei de Biossegurança eficiente e que contemple
efetivamente a nova realidade tecnológica mundial em torno da biotecnologia, da
transgenia e dos OGMs, sem precisar se descuidar do meio ambiente em que se
vive. A aprovação da MP 131, na forma dada pelo Congresso, parece caminhar
neste sentido. Oxalá, desta vez, não haja retrocesso.
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2 Cf. VALLE, S. & TELLES, J.L. (org.). Bioética e Biorisco: abordagem transdisciplinar. Ed. Interciência,
417 p.
3 Cf. Elibio Rech, cientista da Embrapa responsável pela pesquisa, em
www.terra.com.br/istoedinheiro/322/economia.
4 Cf. Oil World, Hamburgo (Alemanha).