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BIOTECNOLOGIA E TRANSGENIA: UMA QUESTÃO CIENTÍFICA E ECONÔMICA



Argemiro Luís Brum

No momento em que o governo federal apresenta ao Congresso uma nova

lei sobre a Biossegurança, no afã de regulamentar a biotecnologia e a transgenia

no Brasil, necessário se faz avançar alguns elementos decisivos ao debate. Com

isto, talvez seja possível racionalizar a questão, evitando que a ideologia e os

interesses políticos superem as questões científicas e econômicas.

Neste sentido, mister se faz destacar que a biotecnologia trata da

tecnologia da vida. Ou seja, na prática pode alterar a estrutura dos seres vivos. Neste contexto, surgiram em nosso meio novos termos, tais como transgênicos,

OGMs (organismos geneticamente modificados) e outros. O que realmente eles

significam? Em primeiro lugar, todo transgênico é um OGM mas nem todo OGM é

um transgênico. Em segundo lugar, isto ocorre porque transgênico é o organismo

cujo material genético (genoma) foi alterado, por meio da tecnologia do DNA

recombinante, pela introdução de fragmentos de DNA externos, ou seja, genes

provenientes de organismos de espécie diferente da espécie do organismo alvo.

Esses genes externos, que são inseridos artificial e intencionalmente no genoma

do organismo alvo, são denominados transgenes, e têm a capacidade de conferir

ao organismo determinadas características de interesse. É o caso da soja. Em

terceiro lugar, os OGMs podem ser transgênicos ou não. Se o organismo alvo for

modificado geneticamente, por um ou mais genes provenientes de um organismo

da mesma espécie do organismo alvo, este é considerado um OGM e não um

transgênico. É o caso do tomate longa vida.

Na atual Lei de Biossegurança brasileira, e que deverá ser modificada pela

nova proposta, não há definição para o produto transgênico. Somente a expressão

OGM é definida como “todo organismo cujo material genético (DNA/RNA) tenha

sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética”. Além disso, ela

complica ainda mais as coisas pois apresenta um novo termo: OVM (organismos

vivos modificados). O mesmo é definido como sendo "...qualquer organismo vivo

que possua uma combinação nova de material genético, que tenha sido obtida

mediante técnicas de ácido nucléico in vitro, incluindo-se o DNA recombinante e a

introdução direta de ácido nucléico em células ou organelas.".2

Em termos mundiais, na área vegetal os OGMs já possuem pelo menos três

gerações. A primeira trata daqueles organismos com características agronômicas

de resistência a herbicidas, pestes e vírus. Os primeiros vegetais desta categoria

apareceram em 1980 e hoje correspondem a maioria aprovada e comercializada

no mundo (é o caso da soja, do milho, colza, tabaco etc....). A segunda reúne as

plantas cujas características nutricionais foram melhoradas qualitativa e

quantitativamente (menos óleo, mais proteína etc...). São poucas as plantas já

autorizadas para comercialização. Enfim, a terceira reúne as plantas destinadas à

síntese de produtos especiais, visando a cura de doenças nos seres humanos e a

geração de vacinas, hormônios, anticorpos etc... (é o caso do arroz japonês, rico

em insulina para curar o diabetes, que em dois anos estará no mercado, assim

como a soja transgênica pesquisada, neste momento, pela Embrapa e capaz de

combater o câncer de mama com o anticorpo SCFU).

No reino animal, dentre as diversas práticas existentes, com algumas já

comercializadas, existem pesquisas com peixes geneticamente modificados

visando aumentar a rapidez de seu crescimento em 25% em relação aos demais.

Produção de frango com menor tamanho, porém, com o mesmo teor de carne (o

mesmo ocuparia menos espaço físico, com menos consumo de ração, garantindo

o mesmo ganho por quilo vivo etc....) Tem-se a bactéria transgênica para a

produção de insulina humana, largamente utilizada no mundo todo. Tem-se

igualmente o uso de uma bactéria transgênica (Escherichia coli), a qual gera a

produção de uma enzima chamada quimosina, empregada na formação do coalho

para a produção de queijos. Tem-se ainda uma nova geração de bactérias que

transformam materiais tóxicos em substâncias menos tóxicas ou até inofensivas.

Não há dúvida que tais produtos, assim que confirmados cientificamente,

irão valer muito mais no mercado mundial em detrimento dos chamados

convencionais. No caso do anticorpo SCFU, o mesmo é vendido no mercado

nacional a R$ 1.000,00 o grama, sendo extraído de células humanas clonadas.

Um hectare de soja transgênica pode produzir 4 quilos do anticorpo. Isto significa

aproximadamente R$ 4 milhões por hectare pelos preços deste final de outubro de

2003. Além disso, tal produção, na prática, permitirá derrubar os preços do

medicamento, até popularizá-lo, favorecendo ao conjunto da população,

especialmente os mais pobres.3 Enquanto isto, o Brasil, enredado por um debate

estéril, perde tempo e não consegue nem mesmo decidir sobre a transgenia

referente a primeira geração. Com o agravante de avançar regras que chegam a

impedir a ciência de continuar suas pesquisas na área.

Este medo do novo em alguns setores da sociedade, é natural no ser

humano, porém, extremamente nocivo pois geralmente retrógrado (o caso do

movimento contra a vacina da varíola, no início do século XX no Brasil, é um dos

clássicos exemplos neste sentido). Assim, cabe destacar alguns dos reais

benefícios e possíveis riscos dos OGMs.

Dentre os benefícios, salientam-se: a biorremediação (utilização de

microorganismos para tratamento de locais contaminados por produtos

agroquímicos, metais pesados, resíduos da indústria de petróleo etc...); a

tolerância das sementes à condições climáticas adversas e a solos inapropriados;

o aumento da produtividade agrícola (menos ataque de pragas, menos inço na

colheita....); a redução de custos no plantio agrícola (menos defensivos, menos

uso de combustível, menos lixo industrial, eliminação de inços, menos

contaminação de solos, pessoas e rios...); as sementes com características

melhoradas qualitativa e quantitativamente (óleos mais nutritivos, menos gordura

saturada, café com menos cafeína, cenoura crocante mesmo depois de cortada

etc....); a síntese de fármacos e vacinas (interferon-alfa-2b, interferon-beta e o

fator anti hemofílico, empregados no tratamento da leucemia, esclerose múltipla e

hemofilia A; o hormônio de crescimento humano somatotropina, já usado há anos

em vacas leiteiras para aumentar a produtividade; além de vários outros produtos

usados para tratamento de doenças circulatórias e de vários tipos de câncer); a

síntese de plástico, através da produção de plástico biodegradável, a partir de

polímeros de soja e de fibra de cana-de-açúcar, com a participação de bactérias

transgênicas etc...

Quanto aos riscos, que merecem atenção da pesquisa no sentido de

eliminá-los ou impedi-los de ocorrer, temos: a possibilidade de uso da tecnologia

terminator (consiste na introdução de genes no genoma de plantas de interesse,

capazes de tornar estéril à segunda geração de sementes); a possibilidade de uso

da tecnologia do traitor (consiste em alterar geneticamente uma planta para que a

expressão de determinadas proteínas, no vegetal, esteja condicionada à aplicação

de uma substância química capaz de ativar ou desativar características

específicas da planta). Com isso, as multinacionais do agronegócio poderiam

aumentar a dependência dos produtores em relação a elas (há o receio de que a

soja em relação ao glifosato se insira neste contexto); eliminação de insetos e

microorganismos do ecossistema (devido à exposição desses a substâncias

tóxicas produzidas por determinadas plantas); a “contaminação” de culturas

convencionais (a soja não tem este risco, a tal ponto que a Embrapa já divulgou a

descoberta de uma semente transgênica de soja para plantio misto); gerar

superpragas resistentes a herbicidas e inseticidas em função dos cruzamentos

genéticos; a geração de substâncias desconhecidas, nocivas ao meio ambiente; a

oligopolização do mercado de sementes OGMs; o aumento do preço final do

produto devido a exigência de rotulagem, pagamento de royalties etc...

Na prática, após sete anos de plantio no Rio Grande do Sul e parte do

Brasil, a soja transgênica, por exemplo, já comprovou que os aspectos positivos

superam largamente eventuais aspectos negativos, até agora inexistentes na

prática. E, tal realidade se estende para as demais culturas, na medida em que a

área mundial plantada com OGMs, para comercialização, pulou de 1,7 milhão de

hectares em 1996, para 52,6 milhões em 2002, calculando-se em 56 milhões de

hectares esta área em 2003. Ou seja, em sete anos a área mundial cresceu 50

vezes. O produto mais semeado é a soja, seguido do algodão, do milho, da colza

e hortigranjeiros.

Hoje, a soja é semeada em cerca de 80% da área nos EUA, 100% na

Argentina, cerca de 50% no Brasil (a partir da liberação), sendo praticamente

100% no Rio Grande do Sul e oeste catarinense; e largamente na China.

Cerca de metade da população mundial (3 bilhões de pessoas) consomem

já há anos produtos oriundos de OGMs, diretamente ou indiretamente. Então,

porque determinados países, especialmente alguns na União Européia e o Japão,

são freqüentemente citados como contrários ao consumo de transgênicos?

Em primeiro lugar, em boa parte destas regiões a população não faz

distinção entre os produtos convencionais e transgênicos, não havendo sequer o

debate. Mesmo porque a própria ciência nestas regiões desenvolve inúmeros

experimentos transgênicos, muitos comprovadamente positivos e já em fase de

comercialização. Assim, para a população, o que interessa é poder consumir um

produto barato, nutritivo, aprovado cientificamente e condizente com a renda

existente.

Em segundo lugar, a resistência, além de ser minoritária, se deve

especialmente aos seguintes fatores: o lado político encontrou um meio de criar

um protecionismo comercial vis- à-vis aos EUA, interpondo o fato de os produtos

serem OGMs para bloquear o comércio dos mesmos, quando necessário e

satisfatório aos interesses econômicos, especialmente no caso da União Européia;

a enorme desinformação, lá também, sobre os produtos transgênicos e os

avanços obtidos pela ciência nesta área; desinformação esta que permitiu

confundir as pessoas e misturar casos totalmente diferentes (sangue contaminado

pela AIDS, dioxina nas rações para frango e doença da vaca louca) com a

transgenia, comparando a mesma como algo possível de causar problemas da

mesma grandeza ao ser humano; e o assunto ganhou destaque em função de

uma jogada de marketing, liderada pela rede Carrefour (França), que viu no

mesmo a possibilidade de se diferenciar de seus concorrentes (hoje praticamente

não se fala mais nisto, aqui e na França).

Paralelamente a isto, a prática mostrou enormes contradições nestas

posturas. Por um lado, parte dos europeus gostariam de obter preferencialmente o

produto convencional, porém, não querem pagar um adicional de preço compatível

com o custo de manter uma cadeia livre de soja transgênica por parte do produtor.

No máximo teriam aceito pagar até 5% a mais quando os produtores acenaram

com a necessidade de 30% a mais sobre o preço de Chicago. Ora, se é tão

importante obter um produto supostamente diferenciado, natural que se pague o

preço pelo mesmo. A negativa demonstra que o mercado consumidor não é tão

contrário ao produto transgênico. Ou seja, os produtos orgânicos e convencionais

se constituem efetivamente apenas num nicho de mercado, em torno dos mais

abastados. A tal ponto que em todas as experiências práticas efetuadas pelos

supermercados europeus, inclusive na França, a população consome os produtos

OGMs, mesmo informada, desde que o preço seja conveniente. Portanto, tal

postura não é apenas uma característica de países subdesenvolvidos. Além disso,

diante da importância científica e comercial do fato, as pesquisas na área dos

OGMs estão avançadas nas regiões supostamente reticentes, com centenas de

experimentos ocorrendo na União Européia e no Japão, reforçando,

aparentemente a lógica do "faça o que eu digo mas não faça o que eu faço".

Enfim, o mercado mundial absorve cada vez mais os produtos OGMs na medida

em que a ciência desmistifica estes produtos. A prova está nas importações de

soja (grão e farelo) realizadas pela União Européia e Japão.

Considerando-se o ano de 2002/03 (outubro a setembro), temos que as

importações de soja em grão e farelo (ainda dados provisórios), por parte da

União Européia, teriam chegado a 17,8 e 19,2 milhões de toneladas

respectivamente. A origem deste dois produtos foi na sua grande maioria junto a

países produtores de soja transgênica. No caso do grão de soja, 50,5% saiu do

Brasil, outros 40,6% dos EUA, 4,4% da Argentina e 3,3% do Paraguai. Quanto ao

farelo, 49,7% foi originário da Argentina, outros 47,2% do Brasil, e 2,7% dos EUA.

Por sua vez, o Japão, no mesmo ano, importou 5,17 milhões de toneladas de

grãos de soja e 970.000 toneladas de farelo de soja. No caso do grão, 75,8% são

importados dos EUA, outros 16,1% do Brasil, 2,7% da China, 1,4% do Paraguai e

0,5% da Argentina. Quanto ao farelo de soja, 21% se originam nos EUA e outros

63,1% na China.4 Em síntese, tanto os europeus quanto os japoneses importaram

neste último ano comercial grande parte de sua soja de países fortemente

produtores de grãos transgênicos.

Desta forma, os mitos criados em torno do assunto foram derrubados em

sua grande maioria. No entanto, o Brasil se atrasou muito no processo. Por um

lado, porque a ideologia dominou o debate sobre o assunto. Por outro lado,

porque o governo titubeou durante anos, não definindo as regras e leis e ficando a

mercê de decisões judiciais morosas, as quais paralisaram o andamento das

questões, favorecendo as posições contrárias à transgenia e aos OGMs. Além

disso, as decisões judiciais seguidamente deixaram dúvidas. Por fim, muitos

organismos contrários, inclusive muitas ONGs, passaram a agir contra, tendo

como objetivo intrínseco atrasar a pesquisa no Brasil e a competitividade da soja e

do agronegócios em nosso país. Afinal, há muitos interesses em jogo.

Nestas condições, os produtores, pressionados pelo mercado a buscarem

constantes aumentos na rentabilidade de suas atividades, sob pena de não se

viabilizarem, avançaram a revelia da lei. Afinal, os ganhos chegam a mais de R$

240,00 por hectare plantado com soja transgênica sobre a convencional

(considerando apenas a aplicação de herbicida). Ao mesmo tempo, apesar do

esforço de alguns institutos de defesa do consumidor, na prática a grande maioria

destes consumidores não se importa em consumir os produtos OGMs.

Paralelamente, os organismos de pesquisa públicos e privados, mesmo diante de

adversidades até legais, insistiram em manter suas pesquisas. Graças a eles,

talvez o Brasil consiga, finalmente, recuperar o tempo perdido na medida em que

for capaz de construir uma Lei de Biossegurança eficiente e que contemple

efetivamente a nova realidade tecnológica mundial em torno da biotecnologia, da

transgenia e dos OGMs, sem precisar se descuidar do meio ambiente em que se

vive. A aprovação da MP 131, na forma dada pelo Congresso, parece caminhar

neste sentido. Oxalá, desta vez, não haja retrocesso.

________________________________________________________

2 Cf. VALLE, S. & TELLES, J.L. (org.). Bioética e Biorisco: abordagem transdisciplinar. Ed. Interciência,

417 p.

3 Cf. Elibio Rech, cientista da Embrapa responsável pela pesquisa, em

www.terra.com.br/istoedinheiro/322/economia.

4 Cf. Oil World, Hamburgo (Alemanha).

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