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Ferramentas de edição gênica e novas culturas agrícolas


Decio Luiz Gazzoni

             A domesticação de espécies selvagens, em tempos antigos, decorria, principalmente, da seleção das plantas com melhores características, por vezes fruto de mutações. Também poderia evoluir por cruzamentos, intencionais ou não. Assim obtinha-se a planta com as melhores características possíveis, embora com alguns “defeitos”. Posteriormente, por meio do melhoramento genético clássico, algumas dessas características foram sendo aprimoradas.

             Já as ferramentas de edição gênica, disponíveis atualmente, permitem editar os genomas de forma precisa e direcionada. A técnica mais proeminente utiliza o CRISPR-Cas9, que originalmente fazia parte do sistema imunológico de bactérias e pode ser reprogramado para editar genomas de, praticamente, qualquer espécie.

 

Domesticando Oryza alta

             Oryza sativa é o nome científico do arroz que consumimos regularmente. Já Oryza alta é uma espécie de arroz selvagem, uma planta perene que pode atingir mais de 1 metro de altura, sendo alotetraploide – ou seja, possui quatro conjuntos de cromossomos (4n), provenientes de duas espécies parentais diferentes que se cruzaram.

             Essa espécie é nativa da América Central e do Sul e está presente no Brasil, onde faz parte das espécies silvestres do gênero Oryza. Ela é utilizada em melhoramento genético do arroz cultivado, especialmente por características de resistência e adaptação. Possui rizoma escamoso alongado, é resistente a algumas pragas como o percevejo-marrom e tolerante a doenças como a brusone bacteriana. O. alta produz grãos comestíveis e nutritivos, mas que não podem ser colhidos porque as sementes caem no chão assim que amadurecem. Algumas espécies selvagens também utilizam nutrientes, como o nitrogênio, de forma mais eficiente do que as variedades domesticadas.

             Por conta destas características, o agrônomo chinês Jiayang Li quer transformar essa espécie de arroz selvagem em uma cultura domesticada, manipulando seu genoma (bit.ly/4rwkTnl). Até aí nada de novo, a História registra inúmeros casos de domesticação de espécies selvagens. Ocorre que o Dr. Li pode alcançar seu objetivo em poucos anos – e tudo indica que conseguirá – quando sabemos que, historicamente, espécies selvagens demoravam séculos para serem domesticadas. É o avanço da ciência agronômica, com o uso das modernas ferramentas genéticas.

             A equipe do Dr. Li sequenciou o genoma de O. alta, comparando-o com o do arroz doméstico, buscando genes semelhantes aos que controlam características importantes, como diâmetro do caule, tamanho do grão e debulha das sementes. Em seguida, eles modificaram esses genes com ferramentas de edição genética personalizadas, para aproximá-lo do genoma que torna o arroz domesticado fácil de cultivar.

             A modificação desse arroz é um exemplo dos esforços crescentes dos agrônomos para domesticar rapidamente espécies selvagens, usando edição genômica. Por meio desse processo, conhecido como domesticação de novo, transformações que levavam milênios agora podem ser alcançadas em apenas alguns anos. O trabalho pode melhorar a resiliência do abastecimento alimentar global: muitos parentes silvestres de culturas básicas possuem características úteis que podem se mostrar valiosas por conta de estresses – por exemplo, as mudanças climáticas - que estão afetando negativamente a agricultura global. In casu, O. alta apresenta resistência muito alta à salinidade do solo e a algumas doenças, bem como tolerância à seca, que são estresses que limitam sua produtividade e até o cultivo do arroz.

 

Novos cultivos

             As primeiras demonstrações de domesticação de novo, por meio da edição gênica, ocorreram por volta de 2018. Um dos estudos pioneiros foi conduzido pela equipe do professor Agustin Zsögön (Universidade Federal de Viçosa), que domesticou tomates selvagens da espécie Solanum pimpinellifolium (bit.ly/3MnBIAK), um estudo por ele denominado de prova de conceito. Essa espécie é considerada muito próxima do tomate que consumimos (Solanum lycopersicum), porém apresenta frutos pequenos, mesmo comparados com as variedades de tomate-cereja, porém são comestíveis e com sabor agridoce. Os cientistas editaram seis regiões-chave do genoma para obter uma planta que produzisse frutos semelhantes ao tomate cultivado. Ao final do estudo, as plantas obtidas produziram dez vezes mais frutos do que a versão selvagem, e os frutos eram três vezes maiores.

             Já a equipe liderada pelos cientistas Zachary Lippman (Cold Spring Harbor Laboratory), e Joyce Van Eck (Universidade de Cornell) estuda a domesticação de uma espécie selvagem de fisális (Physalis pruinosa) (bit.ly/4inkL5m). A fisális pertence à família das solanáceas, a mesma de tomate, berinjela, batata e pimentão. A fisális é muito cultivada em partes da América Central e do Sul por seus frutos doces e dourados. Mas a colheita é difícil, devido ao crescimento extenso da planta e porque os frutos são pequenos e caem no chão rapidamente, assim que amadurecem. A equipe modificou um gene chamado Ppr-SP5G para tornar as plantas mais compactas e ajustou outro, o Ppr-CLV1, para aumentar o peso dos frutos em 24%.

             Outro estudo com domesticação de batatas silvestres, vem sendo conduzido pela cientista Sophia Gerasimova, iniciado quando trabalhava na Academia Russa de Ciências. Durante um tempo ela atuou como cientista visitante, vinculada ao Centro de Pesquisa em Genômica para Mudanças Climáticas (Unicamp) e atualmente se encontra no Leibniz Institute of Plant Genetics and Crop Plant Research. O estudo se concentra na análise de genomas de batatas silvestres para encontrar espécies com características potencialmente úteis (bit.ly/48j9ZZh).

             A espécie Solanum chacoense foi selecionada por produzir tubérculos semelhantes aos da batata doméstica, é resistente a diversas pragas, e as plantas são fáceis de manejar. Também não apresenta a característica de “adoçamento pelo frio”, que é uma resposta de algumas batatas que aumentam os teores de monossacarídeos, como glicose e frutose, quando armazenadas no frio, resultando em um sabor desagradável quando cozidas. Mas, a espécie tem um defeito: os tubérculos são pequenos e amargos. Assim, a equipe identificou cinco genes para a edição por CRISPR, potencialmente envolvidos em características importantes, como o momento da formação do tubérculo e o acúmulo de glicoalcaloides esteroidais tóxicos. A equipe está trabalhando nesta etapa do estudo, para produzir plantas com as características desejadas.

             As ferramentas de edição gênica são recentes, e muitas inovações virão no futuro próximo, tornando-as ainda mais potentes e precisas. Além dos demais benefícios que podem ser obtidos com a sua aplicação, a domesticação de espécies selvagens, em benefício da sociedade, é um exemplo didático do que as inovações tecnológicas podem propiciar.

 

O autor é engenheiro agrônomo, membro do Conselho Científico Agro Sustentável e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.

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